17 de fevereiro de 2007

Claro e escuro, mas não a preto e branco

Toda a verdadeira obra de arte está sujeita à acção do tempo, que se encarrega de a lapidar até ela revelar o seu valor intemporal. Por isso, muitas vezes, quando um artista morre, entra numa espécie de limbo. Os que partilharam os problemas sociais e políticos a que ele deu expressão ficam ligados, também emocionalmente, a essa obra. Mas às gerações mais novas - e tendo em conta, como é óbvio, os vinte anos que já passaram sobre a morte do Zeca - falta essa vivência, essa referência. Paradoxalmente, para se descobrir e redescobrir o que a obra de José Afonso realmente significa para Portugal, ainda é preciso algum tempo e, sobretudo, trabalho. Um trabalho que o leve aos mais novos, às escolas, que ultrapasse de longe (mas sem o ignorar!) o conhecimento rudimentar de algumas das canções mais populares, que o valorize não só como músico genial, mas também como poeta e artista que, como poucos, se soube renovar ao longo das décadas e demonstrou uma sensibilidade sismográfica em relação aos problemas do seu tempo. Ou seja: um trabalho de memória que não o transforme numa múmia, um trabalho científico que não o aprisione em grelhas interpretativas, um trabalho pedagógico que não o torne numa chatice. Uma festa viva, plural, tumultuária.
Há quem diga que o Zeca foi um gigante. E, de facto, essa coincidência rara do criador musical com o poeta e intérprete já em si o torna numa figura de excepção. Mas os que o conheceram gostariam com certeza de lembrar mais um dos seus dons que atravessa todos os outros aspectos da sua vida. Falo da sua pureza humana (não confundir com ingenuidade). Ele soube não esconder a criança que existia em si, não rasurar medos, e por isso não criar muros entre si e os outros. Essa parece-me a fonte da sua sensibilidade e solidariedade, do seu sentido de justiça. E essa também é uma das razões por que a sua obra, depositária da sua dimensão humana, sobreviver quando já nenhum dos que conviveram com ele esteja vivo.
Ao olharmos de perto os textos líricos de José Afonso, há os que parecem simples, mas poucas vezes o são, (como exemplo mais conhecido, "Grândola, vila morena") e cuja pretensa simplicidade vem do facto de serem facilmente cantáveis. Outros, herméticos, que, além de nos exigirem o conhecimento das circunstâncias em que nasceram, também do ponto de vista musical só dificilmente são assimiláveis, como por exemplo "Era um redondo vocábulo". E ainda há os muitos outros, não musicados, quase desconhecidos, à espera de reconhecimento por parte de uma crítica literária preconceituosa para a qual a rotulagem de José Afonso como cantor político serve de motivo para o ignorar como poeta.
Alguns dos seus textos, inspirados em formas populares, de facto parecem simples. Mas será que a poesia popular alguma vez foi simples? Para prova em contrário basta a leitura atenta dos Cancioneiros. E basta também pegar num dos poemas do Zeca, de cariz mais popular, para percebermos a sua mestria formal e densidade poéticas. Cito, a título de exemplo, a "Canção de embalar" do LP Cantares do andarilho (1968):

Dorme meu menino a estrela d'alva
Já a procurei e não a vi
Se ela não vier de madrugada
Outra que eu souber ser p'ra ti

Outra que eu souber na noite escura
Sobre o teu sorriso de encantar
Ouvir s cantando nas alturas
Trovas e cantigas de embalar

Trovas e cantigas muito belas
Afina a garganta meu cantor
Quando a luz se apaga nas janelas
Perde a estrela d'alva o seu fulgor

Perde a estrela d'alva pequenina
Se outra não vier para a render
Dorme qu'inda a noite é uma menina
Deixa-a vir também adormecer

Essa densidade que acabei de referir deve-se ao uso, nas quatro estrofes com versos de nove sílabas, à chamada técnica de leixa-pren que retoma elementos do último verso de uma estrofe para os integrar e alargar no primeiro verso da estrofe seguinte. Assim nasce um tecido textual em que o fim do poema remete outra vez para o início. A voz do adulto tem a função de sossegar a criança, de a acompanhar na sua viagem para o sono, mas ao mesmo tempo as imagens poéticas ganham uma autonomia e grandeza que ultrapassam a compreensão do menino. A estrela d'alva, visível ao amanhecer, é o planeta Vénus, também denominada de estrela da tarde, visível ao cair da noite. É a ela que o cantor delega a protecção da criança e, por ela ainda não ter aparecido, a substitui. Mas essa substituição , ao nível do texto, é dupla. Outra estrela tomar o lugar da estrela d'alva na ausência dessa, porque a criança, para não se sentir abandonada na noite, necessita, se não da luz concreta e real, pelo menos da ideia da permanência. Por isso, a voz do cantor evoca as trovas e cantigas, pondo todo o universo nocturno ao serviço do menino e colocando-o numa espécie de redoma para que nada de mal lhe possa acontecer. Ao prometer a estrela para a manhã seguinte ele garante a restituição da ordem visível em que a criança se move.
A estrela d'alva é o elo entre a noite e a manhã, a maior estrela no céu na perspectiva humana, mas no fim do poema o cantor torna-a pequena, à dimensão da criança, para a integrar no seu mundo infantil, tal como procede com a noite, transformada em menina cansada.
A singular beleza desta "Canção de embalar" reside na sequência das suas imagens, em que o ponto de partida é o menino pequenino, para depois evocar o universo todo e, no final, reduzi-lo ao tamanho de uma criança: um acto de amor transformado em cantiga.
Num texto lírico não musicado, "Fui ontem ao Norte", que deve ter sido escrito nos anos que precederam o 25 de Abril, ou seja, em proximidade temporal com a "Canção de embalar", o tema da opressão política invade a linguagem poética e torna-a hermética.

Fui ontem ao Norte
era ainda cedo
guizos tremiam numa feira de gado
Caras extintas por dentro
Caíam das janelas
Perguntei se era ali
a batina do cacique
a mentira das reses
nos açougues
Ao longo da torreira
Cresciam as uvas
De súbito
fechei os olhos
Sons estridentes
rompiam as paredes
Duma casa em ruínas
A suástica luzia
num círculo
de sinais obscuros
Como a morte
Fez-se noite
Ergui o punho
À onda que passava

À primeira leitura, o poema parece "contar" um incidente numa aldeia algures no norte do país em que a irrupção dos sinais do fascismo contradiz uma aparente calma e pacatez. No entanto, deste o início do texto o tom é tudo menos idílico, porque não existe voz humana a acompanhar o tinir alegre dos guizos, e as "caras extintas por dentro" acusam uma ameaça não expressa. O único ser humano que fala é o elemento que vem de fora, o "eu lírico", um intruso que ousa fazer perguntas acerca do cacique (de batina...) e do gado que vai ao engano para o açouge, uma provocação a que ninguém responde.
E é exactamente neste momento que o texto passa para um nível diferente. Porque, como é que se exprime, em palavra poética, o que não é expresso em palavras? Como se torna visível a indesmentível verdade da opressão? José Afonso opta por um paradoxo. Ao fechar os olhos, como se fosse no negativo de uma fotografia, o que estava oculto sobressai iluminado na sua mente. Sons estridentes sobrepõem-se aos guizos, e a suástica fala mais alto do que o silêncio das caras extintas. Esta imagem é tão forte que inverte as leis da natureza, porque, de repente, a morte ensombra a manhã transformando-a em noite. O punho erguido, sinal de resistência, surge no fim do poema como única resposta possível, não verbal, a uma realidade em que a palavra desapareceu, uma imagem tanto mais expressiva se considerarmos as muitas outras imagens de resistência na poesia de José Afonso. Nomeadamente nos textos musicados, ele invoca a própria cantiga ou a voz do cantor como portadoras de esperança e da vontade de continuar a luta. Mas neste poema, a lógica textual exclui a voz audível como contraponto ao silêncio opressor. A imagem fica: "No pasaran!"
Os dois poemas que escolhi - e que, recordo, terão sido escritos num arco temporal muito fechado - revelam uma fascinante contradição. O primeiro, ao anoitecer, é um texto luminoso. O segundo, à torreira do sol, é um texto ensombrado (não sei se não deveria antes dizer assombrado). Na sua dimensão poliédrica, está neles presente o cunho inconfundível do autor, o seu DNA. E só me resta esperar que as entidades que procuram identificar o genome literário sejam mais rápidas do que as suas congéneres na biologia - que se vão agora dedicar ao cavalo (animal que aliás muito prezo).


Elfriede Engelmayer
(Texto para o debate "José Afonso, a obra poética", integrado na iniciativa "Com José Afonso, 20 anos de caminho", organizada pela AJA-Norte (Núcleo da Associação José Afonso) e o Clube Literário do Porto. Porto, CLP, 16 de Fevereiro de 2007
)

Leave your comment