19 de fevereiro de 2007

Correio da manhã | Especial Zeca Afonso | O Andarilho na juventude

José Afonso morreu há vinte anos. Inscrito nas páginas da História como autor da canção que trouxe para a rua a Revolução de Abril, é recordado pelos seus colegas de liceu como um jovem utópico, distraído e profundamente humano.

Vinte e quatro de Fevereiro de 1987. Mais de trinta mil pessoas percorrem as ruas de Setúbal entre a Escola Secundária de S. Julião e o Cemitério da Senhora da Piedade entoando canções de protesto. Uma das maiores manifestações de que a cidade tem memória. Greve? Movimento operário? Estudantil? Não. Na frente do cortejo segue um caixão, coberto com um pano vermelho, e que vai levado em ombros por Sérgio Godinho, José Mário Branco, Júlio Pereira, Francisco Fanhais, Luís Cília... O desfile, que, não fora a urna, mais parece uma festa, é afinal o funeral de Zeca Afonso. Um mar de gente acompanhando o trovador de Abril à sua última morada. Cumprindo a sua vontade, ninguém usa luto.

“Quando vi aquilo na televisão mal podia acreditar: poderia ser o ‘nosso’ Zeca?” Vinte anos depois de ver o amigo partir, feito “um herói nacional”, o engenheiro António Santos Silva ainda tem dificuldade em compenetrar-se de que o “seu” Zeca veio a tornar-se num símbolo, uma figura quase irreal, um nome de rua, de escola, uma “estátua fria ‘numa praça de gente madura’”, como escreveu no seu livro de 2000 sobre Zeca Afonso, sugestivamente intitulado ‘Antes do Mito’. Para ele, José Afonso continua a ser ainda hoje o seu companheiro de liceu, o “gajo porreiro” que chumbara duas vezes quando se conheceram em 1946. “Era então conhecido como o ‘Torgupês’, por falar uma linguagem na qual baralhava as sílabas. Carlos Couceiro, que chegara de Angola nesse ano, e que também veio a tornar-se engenheiro, era outro dos membros daquela “turma de repetentes”. “Quando falávamos assim, com as sílabas trocadas, ninguém nos entendia, tal era a velocidade”, conta. Os dois velhos amigos estavam longe de imaginar que algum dia aquele rapaz desprendido, “completamente desligado das coisas materiais e sem qualquer sentido prático da vida” viria a ser o Zeca Afonso, conhecido por todos, símbolo da Revolução dos Cravos e referência musical de várias gerações. “‘Que vai ser deste gajo?!’ – era o que a malta pensava”, refere Santos Silva no seu livro.

Percorrendo as ruas da Alta de Coimbra, Santos Silva e Carlos Couceiro, pai do piloto Pedro Couceiro, aceitaram fazer para a Domingo uma viagem no tempo e na memória, recordando alguns dos episódios passados com o ‘seu’ Zeca, na inocência dos verdes anos, quando o jovem estudante dava voz às serenatas e os três saltavam os muros do liceu para penetrar nos bailes aos quais não tinham acesso por falta de dinheiro. Foi na sequência de uma noitada dessas – por sinal, frustrada, já que não tinham conseguido os seus intentos e a noite fora passada no alto do muro à espera que a guarda montada, que patrulhava a avenida, dispersasse – que o jovem Zeca, estoirado pelas emoções da aventura, adormeceu na aula de Ciências Naturais, em plena chamada. “O professor chamou pelo número dele, duas vezes” recorda Santos Silva. “Olhámos. O Zeca dormia profundamente, encostado à parede. ‘Pronto!’, pensei. É desta. Vai ser expulso da aula e chumba o ano. Qual não foi o nosso espanto quando o professor leva o indicador aos lábios e faz: ‘Schiu!’” É que, apesar de “distraído” e “mau aluno”, nas palavras dos seus velhos companheiros, José Afonso seduzia todos pela sua forma de ser autêntica, “sem poses”.

Zeca distinguia-se já entre os seus pares pela sua profunda aversão a qualquer tipo de amarras ou forma de autoridade. Era conhecido o seu horror a polícias que, mais tarde, lhe veio a trazer alguns dissabores assim como a quem o acompanhasse nas ocasiões em que mostrava atitudes provocatórias. Como daquela vez em que seguia no eléctrico e resolveu contar em voz alta uma anedota sobre o então Presidente do Conselho: “Quando se queria falar do Salazar, para que ninguém percebesse, dizia-se o António”, explica Santos Silva. E prossegue: “diz então o Zeca: ‘Olha, sabes, o António tem um cancro... Coitadinho do cancro!” Depois de muito se rirem, os dois amigos apeiam-se do eléctrico, logo seguidos por outro indivíduo. É então que Santos Silva se apercebe que o companheiro ficou para trás: o outro tinha- -o agarrado pelos colarinhos. “O Zeca, à rasca, a tentar escapar e o tipo mostra- -lhe algo na própria lapela: ‘Sabes o que é isto?’. ‘Sei lá o que é essa m....’, responde o Zeca. Aquela ‘m....’ era uma insígnia: o gajo era um PIDE. Não sei como é que ele escapou! Mas ele era assim, dava a volta a toda a gente! Disse ‘m....’ a um PIDE e nem sequer foi preso!”, remata o antigo colega, entre gargalhadas.

Alguns anos antes deste episódio, contudo, muito inocente e longe de qualquer consciência política, o aluno do liceu deslocara-se com uma delegação de estudantes a Braga, para uma comemoração do 28 de Maio, data em que fora implantado o Estado Novo, e participara num momento de euforia no qual a multidão acabara levantando em braços o Marechal Carmona. Uma experiência empolgante, à época, da qual mais tarde se envergonhava, exclamando, quando lha recordavam, com um sorriso meio comprometido: “Tu nem me fales nisso, pá!”
José Afonso vivia então com o irmão mais velho, João, em casa da sua tia Avrilete. Santos Silva era hóspede e lembra que ali se revelou a faceta anticlerical do jovem: “A tia Avrilete era muito devota e ia todos os dias à missa. Um belo dia, à saída da igreja, a senhora caiu e partiu um braço. O Zeca, que estava sempre a gozar com a religiosidade da tia, não perdeu a oportunidade: ‘Está a ver! Devia ter ficado em casa!’. Mas a tia Avrilete apressou-se a garantir que ainda iria agradecer ao Senhor a graça concedida: ‘Podia ter sido pior!’ E o Zeca: ‘Não vá, olhe que ainda cai outra vez! E não é que caiu mesmo?!!”

Em frente à casa da tia Avrilete morava uma jovem costureirinha de origem humilde, Maria Amália, por quem o cantor não tardou a apaixonar-se. Casou à revelia da família e foi instalar-se com a esposa num quarto alugado paredes-meias com o inseparável Santos Silva. Foi ali que conheceram o Dr. Jorge P. com quem os jovens estudantes descobriram o cinema neo-realista italiano e autores como Jorge Amado e Pablo Neruda: “Desconfiávamos que ele era comunista, embora nunca nos tenha tentado ‘engajar’ no partido. Mas com ele assinámos abaixo-assinados a favor dos presos políticos, da Amnistia Internacional... foi, sobretudo para o Zeca, uma iniciação política”. No entanto, quem realmente governava a casa era a mãe do Dr. Jorge P., Dona Guilhermina: “Era uma chupista, via-nos apenas como hóspedes para dar lucro”. A velha senhora, que poupava até na comida que servia para rentabilizar os ganhos, tinha ao seu serviço uma criada chamada Maria, que explorava até mais não. “Era vê-la, às sete da manhã, já a lavar a roupa no tanque do quintal. Pois, certo dia, a moça adoeceu. Tossia que metia dó. Mas a D. Guilhermina, indiferente à febre que lhe rosava as bochechas, recusava-se a chamar um médico”. E então, deu-se a gota de água, conta Santos Silva: “Numa manhã, a Maria Amália foi dar com ela a lavar a roupa no quintal, com um frio de rachar. O Zeca ficou furioso: ‘De certeza que o Dr. Jorge não sabe disto’”. Mas o dono da casa sabia. O desencanto foi demasiado. E José Afonso mudou-se com a mulher para um pequeno apartamento no Beco da Carqueja. Esperavam um filho e a situação financeira era precária. O casamento ressentia-se, não só dos fracos recursos como da diferença cultural entre ambos. Nesse período, os dois grandes amigos de Zeca viviam na República do Sobado Kakulo, e Carlos Couceiro recorda as muitas noites – e manhãs! – em que se deparou com o companheiro deitado, na sua cama, “a dormir ferrado”. “Que remédio tinha eu senão estender um colchão no chão!” E, rindo, conta como o amigo lhe levava a capa e batina “em muito melhor estado que as dele!” e mesmo os sapatos: “Um dia, o tipo até levou um sapato dele e um meu! Dei com ele na Baixa e disse-lhe: ‘Dá cá isso!’ Nem se tinha apercebido.”

Deprimido com as dificuldades financeiras e com o casamento em crise, José Afonso trava um dia conhecimento com uma personagem descrita por Santos Silva como uma espécie de “hippie prematuro”, pelo qual os dois jovens desenvolveram profunda admiração: “Vagueava pelo mundo em busca da ‘luz do nada’. Defendia o despojamento material e tinha preocupações ecológicas”. Estavam criadas as condições para o desenvolvimento de uma corrente filosófica pessoal, a que Zeca deu o nome de Pantrampismo: tudo é trampa. Os amigos chegaram a pensar publicar um jornal que servisse de suporte àquele original paradigma de pensamento. Para a publicação, que nunca chegou a ver a luz do dia, escreveram quadras e sonetos. Mas as circunstâncias da vida não tardariam a separar os três amigos. Estava-se em 1953 e findavam os anos da inocência. Nada seria como antes. Para Santos Silva e Carlos Couceiro, o amor mal sucedido, a falta de dinheiro, os revezes na faculdade, as desilusões com “o mundo real” vieram a ser determinantes no génio criativo que então despertou. Pois, se José Afonso já era então conhecido como um razoável cantor de fados – dando voz às guitarras de António Portugal ou do próprio Carlos Couceiro e às violas de Durval Moreirinhas e Mário Barroso, entre outros –, ainda não começara a escrever nem a compor. Sobrevivia a custo da mesada, algumas aulas particulares que dava e das costuras de Maria Amália que entretanto se empregara à noite no Teatro Avenida a vender doces no intervalo das sessões.

No final dos anos cinquenta, à beira do divórcio e já a dar aulas, Zeca escreve as primeiras baladas. Em Coimbra, todos o conhecem. Frequenta a “ala esquerda” da Brasileira, na qual desponta uma ‘movida’ intelectual. Poetas, jornalistas e artistas fazem ali longas tertúlias. Rui Pato, hoje médico e director do Hospital dos Covões, tinha então 14 anos e desde os 11 tocava viola com vários músicos em casa de António Portugal – um grupo de jovens artistas conhecido como o ‘Portugal dos Pequeninos’. Foi numa das tertúlias da Brasileira que Zeca uma noite exclama: ‘Preciso de uma viola!’ O pai de Pato, jornalista no ‘Primeiro de Janeiro’, responde: ‘O meu filho tem lá uma viola’. E leva “a malta toda lá para casa”. Sentado a um canto, o adolescente observa José Afonso que toca ‘O Menino de Oiro’: “Às tantas, vi que ele estava a engatilhar com aquilo. Muito a custo, lá ganhei coragem e sugeri que talvez conseguisse acompanhar. Tinha aprendido viola clássica e comecei a fazer um dedilhado muito simples mas que caiu ali bem. E o Zeca diz: ‘Esse puto é que me vai acompanhar’! Passado uns dias estava num estúdio de gravação!”

Iniciou-se então a parceria que iria durar até ao final dos anos sessenta, quando Rui Pato acabou por ter de optar entre medicina e a música. Apesar do seu imenso talento, com quota parte de responsabilidade pelo sucesso de Zeca, optou pela primeira. Mas os dados estavam lançados: o menino d’oiro iniciava a sua subida apoteótica rumo à imortalidade. Onde chegou. Mas essa parte da estória, já todos a conhecem...

FILOSOFIA
Ninguém dava muito pelo rapaz, detestava amarras, tinha profunda aversão à autoridade. Zeca até deu nome a uma corrente filosófica: o Pantrampismo; ou seja, tudo é uma trampa. Depois descobriu a música. António Pato acompanhava-o à guitarra.

AS RECORDAÇÕES DE MARIAZINHA
FAMÍLIA APARTADA
A infância de Zeca ficou marcada pelas partidas dos pais e irmã mais nova, Mariazinha, para Timor e depois para Moçambique. Depois dos primeiros anos em Angola com toda a família junta, permanecia longos períodos em casa de familiares com o irmão mais velho João, em Belmonte e em Coimbra. Mariazinha, hoje com 75 anos, recorda as difíceis separações: “Eu era muito ligada ao Zeca. O meu irmão João era mais fechado. Lembro-me de um almoço em Lisboa, antes da nossa partida para Moçambique. As lágrimas corriam-me pela cara. Quase tiveram de me arrancar de junto dele.” Mas a relação entre os dois irmãos manteve-se sempre. Foi Mariazinha que, juntamente com os pais, acabou por “criar” os filhos mais velhos de Zeca que, ironicamente, cresceram longe dos pais, tal como ele próprio crescera. Numa ocasião, Zeca foi a Moçambique visitar a família. Acabou por lá ficar 24 horas. Foi levado pela PIDE. Quando regressou a Portugal, Mariazinha assistiu a alguns concertos, como o do Coliseu: “Tremiam-me as pernas. Eu nunca via serenamente os espectáculos do meu irmão”. Acabou por acompanhá-lo mais regularmente na última fase da sua vida. No dia do enterro, quando viu a multidão e tomou noção da dimensão atingida por Zeca, ficou “assombrada”. E recorda as palavras do filho naquela tarde: “Mãe, o tio Zeca já não é nosso”.

GRÂNDOLA VILA MORENA
A HISTÓRIA DO HINO
De todas as canções de Zeca que ficaram para a história da música portuguesa, ‘Grândola Vila Morena’ ficou como ícone incontornavelmente associado à liberdade.Hélder Costa, hoje director artístico do Teatro A Barraca, natural daquela vila alentejana, contou à Domingo a estória da canção que serviu de senha aos militares de Abril: “Na primeira metade dos anos 60, o País estava em polvorosa. As lutas estudantis de 62 tinham desencadeado um movimento de greves operárias e, em Grândola, a Sociedade Fraternidade Operária Grandolense fazia mexer toda a região”. Espectáculos de teatro, concertos e happenings sucediam-se na colectividade também conhecida como ‘Música Velha’. Foi ali que Hélder Costa, que estudava em Coimbra, levou, em Maio de 64, dois artistas já conhecidos para fazer um espectáculo com um programa aliciante: “Primeira parte – Carlos Paredes; segunda parte – Zeca Afonso”.Impressionado com o ambiente de solidariedade e luta que se sentia na ‘Música Velha’, o músico regressou a casa e dois dias depois enviou uma carta a um dos directores da Sociedade, José da Conceição. Nela vinha um conjunto de quadras: o original de ‘Grândola Vila Morena’. “E não é que o sacana perdeu a carta?!”, exclama Hélder Costa. Mesmo assim, a canção nasceu, foi orquestrada em Paris vários anos mais tarde por José Mário Branco... e o resto faz parte da História.

EM CD DUPLO
REGRESSO DO CANTOR
Os 20 anos da morte de Zeca são pretexto para numerosas manifestações de Norte a Sul do país, entre espectáculos, debates e edições de discos. A Farol Música lança agora a reedição de uma colectânea cujo original saiu em 1983 sob a chancela da Orfeu, em triplo disco de vinil, pela primeira vez em Portugal. São trinta canções, datadas entre 1968 e 1981.

A CANÇÃO DE NOBRE GUEDES
'VENHAM MAIS CINCO'
José Afonso foi um homem indiscutivelmente ligado à Esquerda, embora sempre se tenha recusado a ser arrumado em qualquer partido. Apesar disso, a sua dimensão universal permitiu-lhe granjear admiradores em todas as cores do espectro político. Luís Nobre Guedes, um dos rostos mais conhecidos do CDS-PP, é um deles e até chegou a eleger ‘Venham Mais Cinco’ como a sua canção favorita. Não poupa elogios a Zeca que define como “um poeta extraordinário e um músico fantástico”, dotado de “uma voz belíssima”. Lembra-se de o ouvir ainda no tempo do antigo regime, numa “rádio meio-clandestina que havia aí” e possui mais do que um disco daquele “grande artista”. A quem possa estranhar que um homem assumidamente de Direita goste tanto de um cantor de posição radicalmente oposta à sua, Nobre Guedes responde sem rodeios: “A arte não é de Esquerda nem de Direita!”

Myriam Zaluar | 2007-02-18

1 Comment:

nataliamariacorreiamonteiro disse...

Gostei da frase,A arte nao é de esquerda nem de direita!mas,os grandes artistas normalmente são de esquerda!
Excelente trabalho.