17 de dezembro de 2007

ZECA DE CORPO E ALMA - Texto de Viriato Teles para o espectáculo de Cristina Branco

Se é verdade que a melhor maneira de avaliar o talento de um autor é pela capacidade que a sua obra tem de suportar a erosão do tempo, então não pode haver quaisquer dúvidas acerca da genialidade de José Afonso. As suas canções resistiram como poucas às transformações culturais e sociais que o mundo viveu nos últimos 50 anos, e nem os temas mais conjunturais, resultantes de condições históricas e políticas específicas, padecem daquele mal que torna algumas músicas tão datadas que, passadas as circunstâncias que lhes deram origem, não conseguem ser ouvidas senão como simples documentos ou provas testemunhais de uma época. E o certo é que na história universal da música popular, são poucos os compositores que conseguiram uma intemporalidade tão completa como sucede com José Afonso: juntemos-lhe Lennon e McCartney, Brel e Ferré, Roger Waters e Paul Simon, Chico Buarque e Frank Zappa – e veremos que a lista fica quase completa.
Este facto faz com que a sua obra seja particularmente apetecível para muitos intérpretes, sobretudo os mais jovens, que encontram aqui quase tudo aquilo que um cantor exigente e de bom gosto pode desejar: uma imensidão de temas belíssimos, consistentes, actuais e de uma modernidade que não se apaga. Além disso, Zeca Afonso é um compositor de características genuinamente populares, mas que nem por isso deixa de ser profundamente eclético: a sua música reúne os elementos essenciais da tradição lusitana aliados ao jazz, às músicas populares de África e da Europa, aos grandes clássicos e ao que de melhor produziram os contemporâneos – tal como a sua poesia conjuga os cancioneiros medievais com a escola brechtiana, a lírica tradicional com a lógica dos surrealistas, a intervenção política e o experimentalismo mais ousado.
Assim, não é de admirar que, no ano em que se cumpre o 20º aniversário do desaparecimento físico de Zeca, surjam diversos projectos, dos mais diferentes intérpretes, todos eles tendo por base a obra ímpar do criador de Grândola, Vila Morena. É uma obra tão rica e tão plural que fazê-lo se torna, convenhamos, uma tentação. E, aberto como era às novas tendências e a encorajar os mais novos, José Afonso teria decerto aplaudido todos os que, partindo do seu trabalho, procuram ir mais longe – nos arranjos, nas interpretações, nas atitudes – e tentam não apenas recriar as suas músicas, mas, de certo modo, voltar a inventá-las.
É o que se passa com Cristina Branco. Acompanhada por um conjunto de músicos de excepção (que são também responsáveis pelos arranjos das dezasseis canções que integram este trabalho), Cristina não se limita a ser a voz, mas procura igualmente dar corpo às músicas que interpreta. Fá-lo com zelo, grande entrega e um talento exemplar. Além disso, não se limitou a escolher algumas canções de Zeca, mas escolheu estas, o que torna o desafio ainda mais difícil: é que, se cantar José Afonso nunca é fácil, interpretar este conjunto de temas constitui um risco que só um(a) grande intérprete consegue vencer.
Ora a Cristina, já o sabíamos, é uma grande intérprete. É-o, pelo menos, desde há dez anos, quando se revelou publicamente como cantora. Cantora de fados, numa primeira fase, mas que rapidamente mostrou que queria (e podia) ser muito mais do que isso. Que já seria bastante – mas não o bastante, nem para ela, nem para nós.
Dona de uma voz clara e personalizada, senhora de um estilo próprio, a Cristina não é, nem quer ser, uma cantora igual às outras. Mas também não tem de fazer nada de especial para ser diferente: basta-lhe ser como é, sem afectações e sem se deixar corromper pelos vícios que fizeram com que várias fadistas da era pós-Amália se tornassem como que clones umas das outras. Felizmente, a Cristina resistiu a essas tentações de facilidade e por isso aí está agora, tal como é: inteira, consistente, respeitada pelos seus pares e, mais importante, pelo seu público. Afinal, não há nada mais difícil do que a simplicidade, como nos ensinou o Zeca – e como nos mostra a Cristina.
A experiência agora concretizada de dedicar um concerto à música de José Afonso é o resultado lógico de um percurso, deste percurso de Cristina Branco. Na verdade, a música de Zeca está presente desde o início no trabalho e na vida da cantora: logo na sua primeira gravação de estúdio, o álbum «Murmúrios», cantou As Pombas, e mais recentemente, em «Ulisses», nos brincou com uma primeira e muito fiel versão de Era Um Redondo Vocábulo, uma das mais emblemáticas e mais complexas canções de José Afonso.
Tenho para mim que o mais difícil de cada vez que alguém pretende fazer novas versões de temas antigos – sobretudo de canções tão marcantes como são, por regra, todas os de Zeca – é que não basta ser fiel à forma e ao conteúdo dos originais, mas é sobretudo importante manter intacto o seu espírito. Porque cada canção tem uma alma própria, que é preciso respeitar e manter intacta, por maiores que sejam as transformações, legítimas, que o corpo possa sofrer. E é isso que se sente neste concerto: cada tema aparece numa versão remoçada, criativa e, frequentemente, muito arrojada. Em alguns casos haverá decerto quem questione as soluções
adoptadas – que foram estas, mas poderiam com igual legitimidade ser outras – mas a verdade é que, em todas as interpretações, a alma da canção está lá.

Viriato Teles

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