23 de fevereiro de 2009

Luiza Neto Jorge recordada

Amigos,
ávidos de efemérides, principalmente fúnebres, os portugueses adoram choramingar. E o dia de hoje, 23 de Fevereiro, não deixa de ser tentador para quem quer compensar o corpo da inércia colectiva da alma, à caça de datas e de efemérides com números redondos. Portugal e os Portugueses são assim...
Não vou cometer esse erro. Ou seja, não venho falar dos 22 anos após a partida do nosso bom e honrado poeta/cidadão, militante de humanidade e de ternura. Falo-vos de uma outra pessoa, fisicamente desaparecida dois anos após, grande portuguesa também, poetisa de primeira água, terrivelmente deitada ao assassínio abandono, depois de uma vida curta e muito atribulada. Pessoa com quem o Zeca, nos idos anos de 61 e 62, teve a oportunidade de conviver, no Algarve, bem como com António Ramos Rosa e António Barahona, entre outros.
Falo-vos de Luíza Neto Jorge. Morreu faz hoje 20 anos. Pertencente à escola Poesia 61, com Ramos Rosa e outros, nunca procurou facilidades nem o estrelato. Os seguidores desta corrente nem sempre foram bem compreendidos e recebidos, tanto por parte do Estado Novo como de alguns elementos e grupos da Oposição ao regime. Estes acusavam aqueles de a sua literatura não ter "conteúdo social". Ramos Rosa chegou a dizer que viveu sobre essas "duas ditaduras". Mas o certo é que esta escola, no limiar da década de 60, logo a seguir à mudança da toada coimbrã (em 58) e pouco antes do surgimento do "Tempo e o Modo", muito contribuiu para a evolução estética a vários níveis, libertando a nossa cultura de modelos arcaizantes e conservadores.
A Luíza merece a nossa atenção. Nós, os amigos do Zeca, havemos de celebrar a sua poesia, a sua obra e a sua vida. Creio que estaremos todos de acordo.

Um abraço do
José Carlos Pereira

Eis o poema "DO MEDO I", de Luíza Neto Jorge:

Do Medo I

É de ti que eu sou irmã
por ti fui trocada em criança
quando as estrelas semearam a noite
(Ficávamos chorando de medo
se o laço branco da trança não desse
para a escuridão toda do quarto)

Tenho os silêncios que me emprestaste
e na cidade que levantámos há pouco
(não destruiremos nunca)
habitam os pais
com os não irmãos mortos à nascença
que o eco de um flauta eternizou

no cais dos barcos pequenos de papel
somos irmãos de ninguém
ancorámos com amarras de dúvida

é nosso irmão o medo do poente
a porta azul da morte

Em redor em redor de nós
a solidão voou borboleta negra de metal
caiu enforcado público na gravata verde
(a mesma solidão que cega
os arcos concêntricos das pupilas)

desde a rua ao bolor dos corpos poetas
da porta esquecida sem número
à mulher vendida aos ventos da noite

sem nevoeiros asfixiamos nítidos
nos passeios nos fatos nas cadeiras
nas cúpulas nos clarins

e sentes contigo os corpos das mulheres
de bruços sobre o dia
renascidos maduros os limites da carne

Há nebulosas de anos sem sentido
que vimos aprendendo o amor

há um embrião de veia
há uma veia atávica vermelha
nos mil séculos anteriores ao homem

Quando nos será possível um suicídio exacto
em casas impossíveis
em ondas impossíveis
em (integralmente areia) desertos impossíveis?

Nasceu o sol na erva a erva nos degraus
os degraus desceram ao horizonte

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