27 de dezembro de 2006

Porto de Lisboa, 1967 - Adelino Gomes

Olhou-me surpreendido, quan­do, gravador ao peito, lhe pe­di uma entrevista. "Porquê?
Para quê? Deixei-me dessas coisas”. Ia e vinha, naquele jeito desengonçado de andar. Apontava as malas aos baga­geiros, à polícia de fronteira, nervoso. Fiquei por ali, esquecido, eu próprio a sentir-me guarda fiscal também, no porto de Lisboa (Cais da Rocha? AI­cântara?, a memória retém apenas um balcão comprido num vasto recinto de tectos altos). "O Zeca Afonso regressa amanhã de Moçambique, vais fazer-lhe uma entrevista ao barco"; disseram-me na véspera - estávamos em Setembro - não sei se o Carlos Cruz, se o Fialho Gouveia, realizadores do programa PBX. Transmitido da meia-noite às duas, através do Rádio Ciube Portu­guês, o programa tinha vindo agitar as ondas conformadas do espectro radio­fónico daquele 1967, levando os micro­fones para a rua, à procura de gente,de histórias, de vida.
José Afonso diz-me que há muito perdeu o contacto com a música, que era professor na Beira, e que professor vai voltar a ser, em Setúbal, depois.de uns dias em Faro, para onde eguirá com a mulher Zélia, logo que a alfândega os.libertar .Projectos, como cantor, nenhuns. A entrevista passa para plano secundário. Digo-lhe ali entre o abrir e fechar de malas, e a azáfama de viajan­tes e polícias, aquilo que muitos outros portugueses teriam respondido, se ou­vissem o autor dos "Vampiros", e do "Menino do Bairro Negro" anunciar-­lhes que ia deixar de cantar por esse país fora: que ele não pode abandonar aquela frente de luta cultural e cívica, tão importante para milhares de estudantes, de oposicionistas. "Importantes, umas cantiguetas?", auto-escarnece-se, enquanto dá uma última olhadela aos haveres desembarcados.. Explico-lhe que era através das suas baladas, e das do Adriano Correia de Oliveira, passadas em sequências musicais, ou em montagens de entrevistas ou reporta­gens, que nós, na Rádio, dizíamos aquilo que de outra forma a censura corta­ria. Zeca Afonso terá ficado surpreendido com aquele discurso de um desconhe­cido repórter radiofónico. Acredito que, humilde, não sabia quão importante se tornara para muitos dos seus concidadãos. E, se alguma vez chegou a acredi­tar na influência da sua acção como cantor, a experiência traumatizante que acabava de viver em Lourenço Marques e na Beira convencera-o de que deveriam ser outras e mais directas as fórmulas a utilizar para uma altera­ção do regime político salazar-marce­lista. Acabou por dar a entrevista.
Mas as suas declarações, cortadas pela ''fis­calização" do RCP (um serviço de cen­sura tutelado por um representante do governo mas assegurado por funcionários da estação), só iriam para o "ar" depois de Raul Solnado – amigos dos realizadores do programa - fazer um pedido nesse sentido a Paulo Rodrigues, o subsecretário de estado que aIi mes­mo se designou um dia, como "a caneta de Sua Excelência" (o presidente do Conselho). José Afonso é expulso do li­ceu de Setúbal. O seu nome passa a .ser cortado nos jornais. A Pide prende-o, mais tarde. Nunca mais deixa de com­por e cantar. Sempre de serviço à causa do antifascismo, em sindiatos, associa­ções recreativas, cineclubes. Será uma "cantigueta" que um grupo de militares escolhe para o 25 de Abril.

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