4 de janeiro de 2006

Manifesto sobre o estado da Música Portuguesa

Um país é o conjunto de pessoas e território, mas é também a mundivivência e interacção das pessoas, projectadas nesse espaço social onde convivem e circulam e onde fabricam as idiossincrasias que apelidamos de históricas, socioeconómicas, cívicas, culturais, etc.

Os artistas não são seguramente menos importantes que os médicos, ou os políticos, para a construção do conceito de País. Se considerarmos a projecção do acto cultural no meio nacional, acharemos até que o Artista se substitui muitas vezes ao Estado em acções que, embora de âmbito profissional, são inequivocamente pedagógicas, educativas e divulgadoras de cultura.

Em muitas aldeias, por vezes, se não fosse a Festa Anual, paga do bolso dos próprios habitantes, não haveria outra oportunidade de ver espectáculo, cantores, músicos, instrumentos musicais, teatro, numa palavra - Festa. E as referências culturais seriam seguramente menores.

Por outro lado, muitas vezes - sempre que actua além fronteiras - isso converte o Artista num dos maiores "embaixadores de imagem cultural" do seu país. Quantas vezes em locais onde nunca irá nenhum governante...

Portugal será no Mundo a imagem dos seus políticos, mas não menos a dos seus desportistas, dos seus cientistas, dos seus autores, dos seus artistas. Esta provavelmente até, mais duradoura.

Se "a nossa Pátria é a nossa língua", a sua dimensão é também, seguramente, o espelho dos nossos autores, músicos, cantores, numa palavra: - o ponto de encontro de todos os seus intérpretes e criadores. E do avanço, qualidade e diferença que souberem consubstanciar.

Vem tudo isto a propósito apenas porque se sente que Portugal cuida muito mal dos seus artistas.

Portugal converteu-se num país onde se não conceitua o que é português. Sempre foi. Camões morreu na miséria. Muitos notáveis morreram às mãos da Inquisição. Pessoa foi contabilista. Virgílio Ferreira professor de liceu até à reforma. José Afonso contou essencialmente consigo e com os amigos na doença que o vitimou. Eduardo Lourenço, Jorge de Sena, Anabela Chaves e tantos outros tiveram de emigrar. Carlos Paredes foi - pasme-se! - arquivista de Radiologia do Hospital de S José. É, ao que parece, um deficit de autoestima crónico. Mas doentio e absurdo. Adiante.

A última pedrada é a progressiva perda da nossa própria língua em canção na Rádio e na Televisão.

Com efeito - e mantendo como excepção a Antena Um da RDP - existe uma lei, nunca regulamentada, para a passagem de 50 % de música portuguesa na rádio, mas ela pura e simplesmente não é cumprida. No restante universo das rádios existentes a percentagem média anda abaixo dos 3 ( três! ) por cento. Entretanto, as televisões - cegas por uma guerra de audiências em que vale tudo - caem no abismo, nos reality shows de gosto mais que duvidoso e primam, estranhamente, pela quase ausência de produção de programas musicais em português.

Música anglo-americana, multinacionais poderosas, lobis editoriais fortíssimos, "play lists" que nada mais são que formas de censura expressa, radialistas que são simultaneamente promotores discográficos ou escondidamente afectos a interesses de que deviam ser independentes, etc, uniram-se numa cabala ilegal de incumprimento total da referida lei.

Impunemente.

Os resultados têm estado à vista. A progressiva perda de identidade cultural não parece incomodar os grandes decisores. E a lei prossegue, abstracta, virtual, ausente, diariamente desautorizada.

Os artistas vão resistindo conforme podem. Começa a constatar-se que fazer música e canção em português tornou-se penoso do ponto de vista da circulação discográfica. A uma produção cuidada e de qualidade poética e musical não está necessariamente reservado um espaço em correspondência com o esforço, o investimento, a honestidade e o eventual mérito. Pode ter-se feito a melhor canção do planeta que, se não tiver espaço de audição absolutamente nenhum...morre. Se uma canção não for ouvida, é como se nunca tivesse existido. E a recuperação torna-se impossível. Os editores amedrontam-se; os autores desistem; o circulo vicioso instala-se. E a música dita ligeira, estrangulada e sem quaisquer apoios, definha.

Caso curioso é que, não obstante, o público manifesta, por opinião directa e pela sua adesão e comparência maciça aos espectáculos, exactamente o contrário do que defendem aqueles que proclamam a sua indiferença - e até alergia... - ao que é português.

Por outro lado, com a crise instalada, as autarquias - que representam um universo de 80% dos clientes potenciais - obviamente, cortam nas despesas. E artistas, agentes, actores, técnicos, dançarinos, autores, músicos, cantores e promotores de espectáculo deparam com as portas fechadas. O facto é que a actividade do "Entretenimento", chamemos-lhe assim, é a primeira a parar, por razões obvias de subsistência.

Casos há, que urgia investigar, de profundo desequilíbrio financeiro, falência profissional, derivação para outras actividades, consequente desadequação, insistência desesperada, fracasso de carreiras, desespero, profunda infelicidade pessoal, depressão, suicídio.

É preciso perceber que o artista, por inerência da sua actividade, está exposto ao comentário público, pelo que é exponencialmente maior o seu sofrimento. A crise que o atinge é a mesma que, afinal, abarca todos os campos da actividade socioeconómica. Mas se a administração de uma empresa declarar falência, poucos sabem no país quem era o respectivo Presidente do Conselho de Administração. Se um artista for visto em situação económica embaraçosa, é logo uma vergonha do domínio público, com fortes probabilidades de divulgação meteórica, exactamente nos mesmos media cuja indiferença ajudou a levá-lo à miséria.

Há desconforto e enorme insegurança material espalhada na classe artística. Disfarçada com lantejoulas. Mas há. Evitemos a palavra fome. Mas há um enorme desacreditar. Há casos humanos terríveis a relatar e a denunciar. Que os próprios esconderão pois "parece mal" um artista fracassar. Seria, pensa ele, porque já não é amado ou apreciado. Porque, em última análise, já ninguém o considera "artista". Daí a uma enorme profunda e dramática crise pessoal é um passo mínimo. E os resultados, são por vezes um choque tragicamente surpreendente.

Será que o Estado português deve ignorar os seus artistas ? Estarão os subsídios de mérito a ser atribuidos com justiça, abrangência e adequação às circunstâncias ?

Servirão os artistas apenas para alegrar as campanhas dos partidos quando é necessário encher as salas, para depois serem cuidadosamente ignorados, como descartáveis quando passam eles próprios por problemas?

Será que a Lei da Música Portuguesa deve ser reformulada ? Re-implementada ? Extinta ?

Seria assim tão descabida a atribuição de Bolsas de criação artística para conforto material mínimo, a exemplo do que tantos países fazem para com os seus autores e artistas ?

A canção feita em português não será património e memória para todos nós ?

Em que sonoridade queremos legar a nossa cultura aos nossos vindouros ? Em inglês ? Em português do Brasil ? Em espanhol ?

Quando um país não protege os seus artistas devemos mudar de língua e de fronteiras ?

Se não ouvirmos cantar em português na nossa rádio não estaremos a comprometer uma parte essencial da nossa identidade ? E do nosso futuro cultural ?

Que perspectivas para a canção em Portugal mantendo-se este estado de coisas ?

Cremos ter abordado alguns aspectos que se perfilam dramáticos no seio da "classe" e que revelam sintomas de rotura iminente. A situação em que vivem alguns não deve ser escamoteada pelo relativo sucesso de outros. Os que de nós formos conseguindo resistir, não devemos ignorar os que, por vicissitudes várias, o não consigam. E cada caso e cada carreira teve os percursos e sinergias que teve. Cremos haver matéria para investigação, primeiro, e depois, um debate nacional sobre tudo isto.

Por convergência duma persistente crise financeira, da contenção orçamental geral, das diminuídas capacidades financeiras das autarquias, da indiferença do Estado central e da muito estranha hostilidade das nossas Rádio e Televisão para com as pessoas ligadas à Música Portuguesa pergunta-se:

- Como sobreviver ? Que futuro ?

Pedro Barroso

2 Comments:

Anónimo disse...

excelente.

francisco forte

Anónimo disse...

mas palavras sao palavras, e a elas levas o vento, sim servem de aviso e alento. mas será suficiente, para a poleirosa gente...

força musica portuguesa

tambem, 2 em cada 3 portugueses ja querem ser espanhois. vale a pena pensar nisto.

francisco forte