Núcleo do Norte da Associação José Afonso (AJA) na Câmara Municipal de Matosinhos
As canções de José Afonso foram a porta pela qual entrei em Portugal para ficar. Num verão longínquo, durante o qual frequentei um curso de língua portuguesa em Lisboa, a nossa professora fez-nos ouvir o Zeca. Regressada à Áustria, minha terra natal, e apesar de ainda não conhecer a totalidade da sua produção, decidi escrever a minha tese sobre a sua lírica. Mais tarde, ao longo de um ano em que vivi em Lisboa para iniciar o trabalho de pesquisa, conheci pessoalmente José Afonso – que se tornou meu mestre, não só em relação à sua obra, mas também a este país que ele amava e que ao mesmo tempo o desesperava.
Nesse tempo, o Zeca já era um cantautor consagrado, e no entanto, o meu projecto de tese causou-lhe algum espanto, porque em Portugal ninguém se tinha lembrado de fazer algo de parecido. E mesmo hoje em dia, passados quase vinte anos sobre a sua morte, neste país os seus textos não constam de nenhuma antologia lírica, nem encontramos o seu nome referido nas histórias da literatura portuguesa. Será que a música ensombrou os seus textos?
Não há dúvida de que as numerosas adaptações, variações e reinterpretações e o uso de uma canção de José Afonso em circunstâncias festivas ou reivindicativas provam a sua canonização. Mas por outro lado continuam ignorados os seus textos, musicados ou não, uma obra lírica de mais de 300 páginas, com uma evolução ao longo das décadas, marcada por influências literárias, circunstâncias sociais e desenvolvimento pessoal. Poderia descrever essa evolução como um arco que se inicia com textos inspirados em tradições populares, nos fados e baladas de Coimbra, na lírica de Camões e Pessoa, entre outros, passando por influências surrealistas e fases de grande hermetismo como resposta à censura da época, passando também, logo depois do 25 de Abril, por uma “abertura” discursiva (e nesse aspecto, José Afonso foi um dos poucos no campo da literatura cuja produção reflectiu também formalmente a revolução de 1974). Mas foi também o desencanto que moldou a sua poesia, e naqueles anos entre 1978 e a morte, os seus textos documentam a história deste país e sobretudo a sua história pessoal.
A crítica literária portuguesa tem manifestos problemas em reconhecer um valor autónomo à lírica do Zeca. Se, no universo das canções de intervenção em geral, existem letras que, sem música, perdem a sua força, não é este o caso dos textos de José Afonso. É verdade que a música transforma e intensifica o texto (e poderia aqui lembrar, numa outra escala, as versões musicais que Franz Schubert fez a partir dos poemas de Goethe); mas parece-me óbvio que a autonomia do texto depende simplesmente da sua qualidade e não da circunstância de ser ou não musicado.
Para explicar o fenómeno do desconhecimento de que é vítima ainda hoje em dia o poeta José Afonso, gostaria de desenvolver um pouco mais uma tese que já defendi em outras ocasiões. É o rótulo de “político” que veda a entrada da poesia de José Afonso no campo da literatura reconhecida. Gostaria de deixar bem claro que, em minha opinião, “político” não é apenas um rótulo, mas uma realidade; só que não pode pôr em causa outra realidade, a “estética”. Esse veredicto, aliás, tem uma longa tradição e peca por cegueira e erros de lógica. É mais um gesto de “vade retro” do que um julgamento baseado em critérios científicos.
Senão, vejamos: no caso da lírica de José Afonso, a qualidade de “político” nem sequer é sempre intrínseca ao texto, mas muitas vezes é devida às circunstâncias em que o texto surgiu e em que depois chegou ao público (ouvinte). São disso exemplo “Grândola, vila morena”, mas também os cerca de vinte poemas que nasceram na prisão de Caxias e de que há pouco tempo só conhecíamos como canções criadas pelo próprio Zeca “Era um redondo vocábulo” (do disco Venham mais cinco, de 1973) e “De sal de linguagem feita” (de Fura fura, editado em 1978). Surgiu agora um inédito, que João Afonso interpreta no seu mais recente álbum Outra vida (2006). Trata-se do texto “Ao Zé Letria que também sofre de azia”, escrito em Caxias a 11 de Maio de 1973, e intitulado agora “Bombons de todos os dias”.
O hermetismo inerente a todos esses poemas é a consequência do isolamento físico e psíquico de que José Afonso foi alvo na prisão, mas também da necessidade de cifrar a mensagem.
A suposta contradição entre valores poéticos e políticos que a crítica literária académica tantas vezes invoca, encontra o seu reflexo em abordagens isoladas do poema político sem fazer a ligação dialéctica entre eles, ou seja, a interpretação estética só analisa a forma artística, enquanto a abordagem ideológica só avalia o conteúdo. Mas é paradoxalmente por causa do seu valor “ideológico” no sentido mais lato do termo que o valor artístico do poema político nem sequer é tomado em conta.
E que fazer dos inúmeros poemas de José Afonso que não foram musicados e/ou que não são políticos? Que fazer de facetas do poeta e homem que admirava os textos de Santa Teresa D’ Ávila e de São João da Cruz? Ou que propôs ao Padre Mário fazer um LP inspirado no seu livro Maria de Nazaré com o argumento de que “aquela Maria de Nazaré que canta um Deus que derruba os poderosos dos seus tronos e levanta os pequenos, despede de mãos vazias os ricos e enche de bens os esfomeados é uma mulher revolucionária”? (jornal fraternizar Nº 161, Abril/ Junho 2006. Padre Mário no Café Concerto, “E quanto ao poder que vá para a puta que o pariu!”)
O que distingue os textos políticos de José Afonso do chavão e os torna poesia não é diferente da qualidade que torna poesia os seus textos não-políticos. O chavão é sempre redução, é o chapéu que cobre as particularidades. Mas a literatura nasce sempre do particular, do subjectivo, para poder ser lida como universal. A título de exemplo gostaria de pegar em dois poemas, “Inúteis eram as vozes”, texto não musicado e escrito em Caxias, e “Benditos”, musicado e parte do disco Galinhas do mato.
Inúteis eram as vozes e as palavras
O cativeiro preso dos sentidos
Abre-se uma comporta e nada altera
A matéria dura de que é feita a vida
Ferros pedaços brancura nunca vista
E um rio que não pára nem descansa
Que perfeita modorra não se esconde
Nesta vasa indecisa e aos ouvidos
Chegam silvos cantantes gargalhadas
E tudo dói como se fora treva
Como se fora vinho esta névoa
Mesmo se não soubéssemos onde e em que circunstâncias nasceu este poema, percebíamos que o texto assenta no contraste entre um fora e um dentro, entre um mundo em movimento povoado de sons de barcos e pessoas, onde o tempo passa normalmente, e a clausura de um indivíduo separado desse mundo. Isolamento e dor caracterizam a sua situação, a inutilidade e, provavelmente, a impossibilidade de comunicação. Os muros da prisão não são nomeados. Mas também não é preciso, eles estão lá, no texto. O poema poderia não tratar da prisão de Caxias, mas sempre tratará da experiência extrema do cativeiro. O elo entre estes dois mundos separados são as imagens do “cativeiro represo dos sentidos” e da comporta que se abre, é um elo meramente imaginário porque “a matéria dura de que é feita a vida” fica inalterada. Este poema, por partir de uma situação pessoal de limite e ao mesmo tempo encontrar meios literários adequados para transportar a sua mensagem, consegue não só exprimir, de uma maneira universal, o sofrimento do indivíduo preso, mas transforma-se ao mesmo tempo numa acusação. A mais-valia do texto reside, a meu ver, exactamente no facto de essa acusação não ser directamente expressa por palavras.
Por fim, e no fim da minha (espero) breve intervenção, convido-os a olhar um pouco mais de perto o poema “Benditos”.
Já fui neve no mar
Já fui espada na mão
Já fui a corda
Da lira a vibrar
Já fui servo de um Deus
Vida e morte num momento
Já nasci no barlavento
Já fui como a erva do chão
Bendito seja o pão
Bendita seja a dor
Benditas as portas do amor
Já fui favo de mel
Cajado de pastor
Já fui a nuvem correndo no céu
Já fui ceptro de um rei
Arco-íris num instante
Já fui vento do Levante
Já fui andarilho e cantor
Bendita seja a paz
Bendita sejas tu
Benditos os peixes do azul
Não há, na literatura que conheço, um texto de despedida que mais me comova. E não é por ter conhecido pessoalmente José Afonso.
Só há duas formas de verbo ao longo do poema: o passado que nomeia tudo o que o “eu” já foi “em vida” e o conjuntivo que projecta o desejo da bênção num futuro que já não faz parte do texto (e do tempo do “eu” que fala). De entre aquilo que o “eu” já foi, aparecem fenómenos da natureza, como “a neve no mar”; instrumentos como a “espada na mão”; aparece a caracterização como “servo de um Deus” e “andarilho e cantor”; momentos existenciais como vida/nascimento e morte. É um inventário de identidades de quem parte e se quer reassegurar daquilo que já foi.
E a partir dessa (s) identidade (s) que nitidamente destroem as fronteiras entre o que é considerado humano e não-humano, é proferida a bênção a todos os aspectos pretensamente simples da vida como o pão e a paz, a beleza e o amor, em suma, à criação.
Mas onde fica quem abençoa? Não há presente no poema, a não ser o acto de fala de quem se lembra daquilo que foi e que deixa um legado. É um legado de uma pessoa que já está a partir e que fez as pazes com todos os seus caminhos e desvios. Se olharmos de perto as enumerações que surgem no texto, vemos contradições. Quem foi espada na mão, não foi, ao mesmo tempo, favo de mel; quem foi cajado de pastor, não foi, ao mesmo tempo, andarilho e cantor. Mas quem foi tudo o que o texto diz, em momentos diferentes, sem renegar nada do seu passado, encontra-se no lugar certo.
A despedida poética e a outra despedida de José Afonso não se fizeram com amargura. Por sugestão dele, o título do último disco estava para ser “Nem o pai morre nem a gente almoça”. E é espantoso que um dos traços mais marcantes da sua obra seja a força que dá para viver. Deveria ouvir-se mais a sua música, ler mais os seus textos. Pode viciar, mas os efeitos secundários são benéficos.
Elfriede Engelmayer
4 Comments:
Boa!
parabens à autora do texto e ao "construtor da página"
OUVI O TEXTO EM MATOSINHOS! ELFRIEDE É UMA MULHER EXCEPCIONAL!PENA É QUE SEJA POUCO "UTILIZADA" PELA AJA!
VEJO A PÁGINA DA AJA; QUEM A MANTEM LUTA "CONTRA A CORRENTE"...MAS VALE A PENA!
Elfriede é de fato uma importante referência para o olhar acadêmico desta rica produção poética do cancioneiro de Zeca Afonso. Em minha tese, escrevi a seguinte crítica:
"Enquanto no Brasil esta produção musical é elevada a uma das mais representativas fontes de análise histórica, sociológica, literária e antropológica, em Portugal, a chamada canção popular portuguesa, não tem sido objeto privilegiado de análise por estas diferentes áreas do conhecimento. As letras das canções brasileiras foram equiparadas à poesia, analisadas, publicadas e exploradas pelo mercado editorial e não apenas pela indústria fonográfica. Em Portugal, as letras das canções não aparecem citadas em livros didáticos e em outros de cunho acadêmico, indicando mesmo um desprezo (ou desconhecimento) pela rica produção poética daí advinda. Os compositores José Afonso e Sérgio Godinho, por exemplo, tiveram suas letras reunidas e publicadas entre as décadas de 1970 e 1980, porém, de forma muito incipiente.
Um sinal claro da ausência de pesquisas acadêmicas sobre a canção portuguesa está no fato de haver até o momento uma única dissertação sobre o tema da canção de intervenção em Portugal, no caso, a obra Canto de Intervenção (1960-1974), de Eduardo Raposo, publicada no ano de 2000. Houve ainda dois outros trabalhos acadêmicos, mas desta vez unicamente sobre José Afonso, realizados na Alemanha (Utopie und Vergangenheit: Das Liedwerk des portugiesischen Sangers José Afonso. Elfriede Engelmeyer. Editora da Universidade de Viena, 1985, 267 páginas. Esta é a primeira tese sobre os textos de José Afonso, feita em Hanôver e apresentada em 1983 na Universidade de Viena/ Áustria) e na Itália (La "Canção de Intervenção" e L'Opera Lirico-Musicale di José Afonso. Tesi di Laurea in Lingua e Letteratura Portoghese. Relatore: Chiar.mo Prof. Roberto Vechi. Presentata da: Nicolleta Nanni. Anno Accademico 1998/ 9) encontrados na Associação José Afonso (AJA)."
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