11 de maio de 2006

Zeca, 75 Anos

Por NUNO PACHECO
Jornal Público | 02 de Agosto de 2004

Aveiro, 2 de Agosto de 1929. Na freguesia da Glória nascia um menino que teria o nome de José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos. Pai: José Nepomuceno Afonso, magistrado. Mãe: Maria das Dores, professora primária. Não tardarão a embarcar, os pais, para África. Ele irá depois.

Aveiro, 2 de Agosto de 2004. Hoje. Junto à Praça Fonte Nova, uma rua vai receber o nome do menino que foi para África e voltou, para aqui viver, cantar e morrer: José Afonso. Há outras ruas ou praças com o nome dele, em terras que alguma vez o viram ou ouviram, na sua errância pelo Portugal que amava, aquele que lhe permitia sentir de perto a vida das suas gentes. Agora haverá mais uma, na cidade onde nasceu. À noite, para que e lembrança não se confine à laje suspensa da toponímia, haverá música de homenagem no Largo do Rossio (21h30). De entrada livre, como ele idealizava o universo, e com nomes próximos: Sérgio Godinho, que com ele cantou, e Vítor Almeida Silva que, de óculos de aros grossos, o imitou no antigo "Chuva de Estrelas".

Depois, o que virá? De novo o silêncio? O que é possível saber dele, para que o não esqueçam? Há, disponíveis, além dos discos, vários livros e informações dispersas que permitem conhecer melhor não só o músico como também o homem (ver caixa). Para este ano, a juntar aos materiais disponíveis, prevê-se o lançamento pela primeira vez em DVD (há uma edição, em VHS) do Concerto no Coliseu dos Recreios de Lisboa, gravado a 29 de Janeiro de 1983 e difundido pela RTP com críticas do próprio cantor pela forma como o programa foi, então, montado e reduzido. Mesmo assim, ficou para a história como o único registo videográfico disponível de um momento irrepetível: sendo o primeiro concerto de José Afonso como músico profissional foi também o último, porque a doença que o minava (uma esclerose lateral amiotrópica) só lhe daria mais quatro anos de vida. Morreria em Setúbal, a 23 de Fevereiro de 1987, com 57 anos.

Uma noite histórica e outros registos

Na noite do Coliseu, tensa e inesquecível, há um momento em que a voz do cantor cede à comoção e denota um estrangulamento breve, numa passagem da "Balada do Outono" que, ali e naquelas circunstâncias, soava já como epitáfio: "Águas das fontes calai / Ó ribeiras chorai / Que eu não volto a cantar". Muitos dos presentes não conseguiram esconder as lágrimas e ainda hoje, ao ouvir ao gravação do espectáculo, é possível sentir esse momento como um arrepio. Com José Afonso, nesse palco onde o abraço era já meia despedida, estavam, entre músicos e cantores, Octávio Sérgio, Lopes Almeida, Durval Moreirinhas, António Sérgio, Rui Pato, Francisco Fanhais, Fausto, Júlio Pereira, Janita Salomé, Serginho, Guilherme Inês, Rui Júnior e Rui Castro.

A edição do DVD, quase pronta, reunirá, segundo a editora que a preparou (a Costa do Castelo), mais uma hora de extras à gravação do concerto tal como foi difundido pela RTP, também com 60 minutos (terá sido impossível uma remontagem, para ampliação, do material original). Serão sete extras, no total, todos dos arquivos da RTP: uma participação do cantor no programa Lugar de Exílio, em Maio de 1980, onde fala, da sua vida e carreira, e canta, acompanhando-se à viola (a gravação é a cores); uma espécie de teledisco gravado numa quinta de Azeitão, 1981, com a canção "Saudades de Coimbra"; imagens do 25 de Abril com "Grândola Vila Morena" em fundo; e vários registos a preto e branco, dele a cantar: "Os vampiros"; "Menino do bairro negro" na série Coimbra Musical, em 1978; "Os fantoches de Kissinger", na série Pifelin, 1975; "Milho Verde", num dueto com o cantor francês Georges Moustaki, 1975; e um registo do I Encontro Livre da Canção Portuguesa, no Palácio de Cristal do Porto, logo a seguir ao 25 de Abril (na noite de a 3 de Maio de 1974), ele e outros cantores a entoarem juntos "Venham mais cinco".

Grândola e o que se seguiu

Para quem conhece mal ou não conhece sequer José Afonso, refira-se que dos três aos dez anos ele andou por Angola (1933-36), Aveiro (1936), Moçambique (1937), Belmonte (1938-39), devido a obrigações de carreira do pai. Em 1940 vai para Coimbra, onde casa pela primeira vez e onde fica até ser chamado ao serviço militar, em 1953. Entretanto, começa a cantar. Primeiro no liceu, depois na Universidade. Rui Pato, seu amigo, acompanha-o à viola. Grava o primeiro 45 rotações, "Baladas de Coimbra", em 1958 e, durante uma deslocação ao Algarve (é então professor) conhece aquela que virá a ser a sua futura mulher: Zélia Santos. É com ela que, em 1964, ruma de novo a África, com destino a Moçambique, uma viagem decisiva no cimentar da sua consciência anti-colonial. No regresso, é expulso do liceu e perseguido pelas suas posições políticas. Canta mais para sobreviver do que por opção de carreira, mas no entanto os seus discos começam a ser bandeira de uma geração que vê nele um dos seus mais lúcidos arautos.

A escolha de "Grândola Vila Morena" para senha do 25 de Abril de 1974 associa para sempre o seu nome à história da revolução dos cravos. De 1966 até 1985 gravou 15 álbuns, todos já reeditados em CD (a esmagadora maioria pela Movieplay, que possui o catálogo Orfeu, mas também pela EMI-VC e pela Strauss). O último, "Galinhas do Mato", teve em 2002 uma edição especial, pela MVM, com um documentário vídeo extra, com vários depoimentos. A estes álbuns juntaram-se nestes anos algumas colectâneas e três outros CD com gravações antigas: "Carlos Paredes/José Afonso/Luiz Goes", da EMI, 1992 (que tem, por exemplo, o "Coro dos Caídos" e "Canção do Mar"), "Os Vampiros" (uma edição medíocre da Edisco, de 1987) e "De Capa e Batina", esta com libreto biográfico de 72 páginas e textos de José Niza (Movieplay, 1996).

Para perpetuar a sua obra e memória, como músico, poeta, cantor e compositor, têm contribuído a actividade da Associação José Afonso, o prémio musical José Afonso atribuído anualmente pela Câmara da Amadora e os discos (de homenagem ou reencontro) "Filhos da Madrugada" (1994) e "Maio Maduro Maio" (1995), onde se propõem diferentes releituras de muitas das suas canções.

DISCOS OBRIGATÓRIOS

Sem dispensar outros, há pelo menos cinco discos de José Afonso de audição obrigatória, todos disponíveis em CD: “Baladas e Canções” (1967, com registos de 1964), “Traz Outro Amigo Também” (1970), “Cantigas do Maio” (1971). “Venham Mais Cinco” (1973) e ‘Como Se Fora Seu Filho” (1983). Correspondendo a várias fases da sua evolução criativa, são obras-primas.

OBRAS BIOGRÁFICAS

A par de inúmeros artigos dispersos, há três livros de referência: José Afonso—Andarilho, Poeta e Cantor”, editado pela Associação José Afonso (1994), “José Afonso, O Rosto da Utopia”, de José A. Salvador (Terramar, 1994, 1999) e “Zeca Afonso, As Voltas de um Andarilho”, de Viriato Telas (Ulmeiro, 1999).

MEMÓRIAS INTIMISTAS

Aos ensaios juntam-se memórias de amigos ou familiares. É o caso de “José Afonso, Um Olhar Fraterno”, do irmão mais velho do cantor, João Afonso dos Santos (Caminho, 2002) e de “Zeca Afonso Antes do Mito”, de um amigo dos tempos de Coimbra, António dos Santos Silva (Minerva, 2000). De José Jorge Letria, cantor nos anos -70, há três: “José Afonso: O Que Faz Falta”, colectânea de depoimentos co-organizada com José Fanha (Campo das Letras, 2804); “Zeca Afonso e a Malta das Cantigas”, a história contada aos mais novos (Terramar, 2882); e “Carta a Zeca Afonso”, epístola em forma de poema (Universitária Poesia, 1999).


POESIA E CANÇÕES

Livros com poemas e canções há três: uma reedição actualizada de “Cantares”, editado pela Nova Realidade em 1965 e reeditado pela Fora do Texto, Coimbra, 1992; o pequeno “Quadras Populares”, de 1982. reeditado pela Ulmeiro em 1990; e, por fim, o único que reúne a totalidade da sua poesia, “Textos e Canções, editado pela Assírio & Alvim em 1983 e com última edição revista e aumentada por Elfriede Engelmayer datada de 2000. Este último é essencial.


ANÁLISE DA OBRA

O livro mais relevante é “José Afonso, Poeta”, de Elfriede Engelmayer, estudiosa da obra de José Afonso (Ulmeiro, 1999). Mas é também digno de nota o opúsculo “A Música Tradicional na Obra de José Afonso”, de Mário Correia (Câmara da Amadora, 1999).

1 Comment:

Anónimo disse...

Este é um comentário um bocadinho estranho mas muito entranhado:



Grândola século XXI

Terra da fraternidade,
nosso anseio
fizemos do teu cantar.

Vereda da humanidade,
pátria de todas as pátrias
quisemos-te sonhar.

Desde os corações dos povos
acima de todas as fronteiras
prometemo-nos encontrar.



Mas está a tua praça vazia
tão vazia como a nossa esperança.

Quem apagou as pegadas do caminhante?
Quem extinguiu a luz antiga do candeeiro?
Quem silenciou o eco vigoroso da palavra?


Ficaste no mapa esquecida
cravos murchos a pé dos carris,
enquanto viajantes sem destino
arrumamo-nos no primeiro comboio
que passou rente de nós.

Oh!, Zeca
soará mais uma vez a tua voz?