"Grande engano! Mísera sorte! Estranha confusão! ..." - são palavras utilizadas por Luís de Camões para definir alguns desastres do aventureirismo lusitano.. .
E não sei porquê - até porque o espírito que presidiu a essas aventuras se baseava num conhecimento profundo e altamente especializado da arte de marear, devendo-se os desastres a contigências próprias dos anseios descomedidos do Poder, e nunca a falhas gritantes de competência técnica... -, estas palavras incisivas do poeta renascentista vêm-me à memória sempre que penso nos sons da angustiosa indigência artística e intelectual produzidos por alguns grupos musicais portugueses com larga audiência no nosso caseiro mundo do espectáculo, afora alguns indeléveis recortes para o álbum das recordações excursionistas por terras de Espanha, alegria das famílias e orgulho patriótico de uma imprensa dita especializada...
A eminência parda que, em derradeira instância, sempre decide as eternas questiúnculas entre o "querer" e o "poder' é, indubitavelmente, o "saber"... Quem sabe, pode quando quer; quem não sabe, até ignora o que poderia se acaso quisse aprender... Para mim, a norma de conduta mais razoável e eficaz consiste em saber-se o que se pode e fazer-se, em função disso, o que se quer. Quem não sabe o que pode, acaba por fazer o que não quer. . . E quando vejo louvar e incentivar a actividade desses inválidos da música, o seu trôpego caminhar por sobre os calhaus ásperos de um som não dominado, por entre os cardos da inépcia mais grotesca, volto a lembrar-me do discurso camoneano, sou tentado a perguntar aos empresários, aos agentes, a certos críticos e jornalistas confessamente virgens de qualquer conhecimento técnico (ou mesmo histórico!...) Na matéria sobre que dissertam enquanto apoiam movimentos de tão previsível mau destino:
"A que novos desastres determinas de levar estes Reinos e esta gente? Que perigos, que mortes lhes destinas debaixo de algum nome proeminente? Que promessas de reinos e de minas de ouro, que lhe farás tão facilmente? Que famas lhe prometerás? Que histórias?.. Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
Camões acaba por amaldiçoar aqueles que puzeram nas ondas o primitivo madeirame de barcaças encimadas por uma vela. Eu não amaldiçoo ninguém, é óbvio; mas espanta-me, assusta-me, a leviandade com que se põe num palco, num estúdio, sujeito à verdadeira - e implacável - crítica do futuro, gente que nem sabe pegar num microfone para gemer a sua importância vocal, poética e musical...
De todos os actuais êxitos e aplausos ficará cinza, pó e nada. Ficará o fel das grandes ressacas, o sabor do papel de música que nunca se provou... E isso é tanto mais grave quanto não está provado que todos esses infelizes homenageados de hoje, gozados de um amanhã já próximo, sejam por natureza destituídos de jeito, capacidade de aprendizagem, até de certo talento para a arte que tanto amam, ainda que sem serem correspondidos... A música (tal como qualquer outra actividade profissional...) não vai nas cantigas de tais namorados: São fulanos que ostentam, na melhor das hipóteses, uma fachada razoável, mas que deixam logo a certeza de não terem o interior mobilado...
Nós podemos apreciar mais ou menos, muito, pouco ou mesmo nada, um determinado estilo, sem que isso nos leve a ignorar onde é que está um profissional, alguém que se sabe mexer, alguém que sabe cantar, que sabe tocar, que consegue indiscutivelmente transmitir uma ideia, um pensamento, uma filosofia... Essa filosofia pode desagradar-nos, até; mas a capacidade técnica ou artística de quem a comunica não deve ser posta em causa, sob risco de perdermos o desafio por abuso da autoconfiança, por ridícula estultícia e arrogância...
Portanto, não interessa, em princípio, saber se todos gostamos ou não da mesma música, se todos estamos de acordo com determinadas correntes de pensamento; trata-se, para já, de exigir que os seus defensores saibam exprimir-se, pois só a partir daí poderá haver discussão ou confronto de opiniões.
Não caindo na tendência altamente reaccionária de separar as formas dos conteúdos, temos que admitir que o mundo em que vivemos - ou sobrevivemos... - tem ao seu serviço expressões artísticas que definem as suas problemáticas, a sua ideologia, as suas coordenadas de pensamento: a música de uma sociedade poluída não pode ser límpida como um ribeiro de águas nascentes, não pode ter contornos sonoros definidos ou puríssimos, mas terá, necessariamente, de ser pastosa, poluente, insalubre, endémica. Na verdade, se consentimos que um rio seja sinónimo de esterqueira, como poderíamos aspirar a uma música de encantos pastorais onde pudéssemos mergulhar e nadar sem o perigo das mais abjectas contaminações?!
É evidente que este é o meu ponto de vista. Mas há quem defenda que toda a trampa vale a pena quando a ind ústria não épequena. Há quem colabore com as forças de manutenção deste mundo e que defenda como útil e indispensável a entrega a paraísos artificiais compensatórios do inferno em que transformaram a realidade concreta. Há quem defenda efectivamente a droga e a alienação, a ignorância das tragédias e das aberrações como forma de sobrevivência - e essa filosofia tem a sua música própria, assente numa estética correspondente e coerente.
Eu sou contra esse mundo, essa filosofia e essa música - e estou no meu direito, parece-me... Tal não significa, entretanto, que negue (seria absurdo fazê-lo!) a capacidade profissional dos seus mais eficazes defensores: são de tal modo eficientes que há milhões de pessoas que não reagem contra esse destino de inquilinos de uma sempre crescente lixeira, ou que julgam que para combater semelhantes perigos e ameaças bastará ouvir música e idolatrar cantores, o que deixa, naturalmente, uma invejável margem de manobra aos responsáveis pela esterqueira.. .
Pelo contrário, há grupos musicais entre nós cuja nulidade não permite discussão; é correspondente à sua total ausência de ideologia - direi mesmo de raciocínio em relação aos problemas sociais, culturais ou políticos... Mas essa nulidade permite que o grotesco macaqueamento de uma linguagem de teor neo-fascista, por exemplo, possa ser utilizado, sem atritos de qualquer espécie, numa festa de ideologia progressista - e vice-versa!
Mais ainda, estes párias da cultura são muito estimados e promovidos por todas as forças partidárias, tanto faz que cantem para uns como para outros, que mudem de candidato presidencial ou de grupo parlamentar como quem troca as cuecas. Essencial é que a sua mensagem seja absolutamente õca de sentido e que a própria forma como se exprimem não se arrisque a nenhuma definição de fins nem de princípios. É gente para usar e deitar fora. . .
Ora essa gente... é gente! Longe de os condenar como culpados, eu considero que esses lamentáveis grupos são as grandes vítimas de um sistema efectivamente infame, pluralista saga de uma anti-cultura militante, a castração da crítica, a busca a uma sociedade amorfa e conformada, apenas ruidosa, o muito barulho para nada, a ausência de uma vontade autêntica e actuante. Alguns desses actuais incapazes poderiam talvez deixar de o ser se seguissem um exemplo respeitável, uma filosofia concreta.
O símbolo de uma filosofia de participação e de responsabilização dos artistas e intelectuais nos destinos do mundo encontra-se na música e nas ideias de José Afonso.
É um disparate argumentar-se com a teoria de que ele não sabia música. Sabia a música de que necessitava para defender os seus conceitos. Poucos como ele foram capazes de tomar conhecimento do que podiam para fazerem depois o que queriam!
Em nenhuma obra de José Afonso se pode lamentar que ele não tivesse conhecimentos suficientes para se exprimir literária e musicalmente. Foi um artista que soube paradigmaticamente encontrar a forma que correspondia ao seu conteúdo ideológico, sem cedências nem transigências, sem qualquer vislumbre de conformismo ou de aceitação de uma menoridade: o que fazia era bem pensado, bem escrito, bem composto e bem cantado! José Afonso é hoje muito elogiado, nomeadamente por alguns que ele menos poderia suportar em termos artísticos - e não só... Mas isso não é grave. Antes pelo contrário, pode ser muito relevante se os homenageadores se esforçarem por aprender com o homenageado. Que se transformem, quanto possível, os amadores na coisa amada - e tudo ficará certo. . .
Não se trata de saber solfejo, leis de harmonia ou normas de contraponto. Nem mesmo se trata de conhecer muitas posições na guitarra. José Afonso nunca precisou disso... Do que ele nunca prescindiu foi de criar uma técnica própria, foi de evoluir artisticamente até ao ponto de ser, para todos os efeitos, um Mestre. E o caminho por ele percorrido passou, inevitavelmente, pela consciência de que toda a arte exprime um ideário, se orienta por conceitos estruturados com base naquilo em que se acredita e que se pretende defender.
Não vou sequer ao ponto de desejar que todos perfilhem - como eu tento perfilhar, na medida do meu possível - a linha ideológica pura e intransigente de José Afonso, um homem bafejado pela Razão e por um superior sentido de Justiça, valores que se pagam muito caro. . .
Penso, isso sim, que o simples respeito pelo artista que ele foi, o seguir do seu sistema de trabalho como padrão para o estabelecimento de um critério de valores profissionais, já poderia ajudar muita gente a enveredar por uma estrada digna e a livrar-se do juizo final de um público que aplaude, compra, consome... - mas, no fundo, não perdoa!
E não sei porquê - até porque o espírito que presidiu a essas aventuras se baseava num conhecimento profundo e altamente especializado da arte de marear, devendo-se os desastres a contigências próprias dos anseios descomedidos do Poder, e nunca a falhas gritantes de competência técnica... -, estas palavras incisivas do poeta renascentista vêm-me à memória sempre que penso nos sons da angustiosa indigência artística e intelectual produzidos por alguns grupos musicais portugueses com larga audiência no nosso caseiro mundo do espectáculo, afora alguns indeléveis recortes para o álbum das recordações excursionistas por terras de Espanha, alegria das famílias e orgulho patriótico de uma imprensa dita especializada...
A eminência parda que, em derradeira instância, sempre decide as eternas questiúnculas entre o "querer" e o "poder' é, indubitavelmente, o "saber"... Quem sabe, pode quando quer; quem não sabe, até ignora o que poderia se acaso quisse aprender... Para mim, a norma de conduta mais razoável e eficaz consiste em saber-se o que se pode e fazer-se, em função disso, o que se quer. Quem não sabe o que pode, acaba por fazer o que não quer. . . E quando vejo louvar e incentivar a actividade desses inválidos da música, o seu trôpego caminhar por sobre os calhaus ásperos de um som não dominado, por entre os cardos da inépcia mais grotesca, volto a lembrar-me do discurso camoneano, sou tentado a perguntar aos empresários, aos agentes, a certos críticos e jornalistas confessamente virgens de qualquer conhecimento técnico (ou mesmo histórico!...) Na matéria sobre que dissertam enquanto apoiam movimentos de tão previsível mau destino:
"A que novos desastres determinas de levar estes Reinos e esta gente? Que perigos, que mortes lhes destinas debaixo de algum nome proeminente? Que promessas de reinos e de minas de ouro, que lhe farás tão facilmente? Que famas lhe prometerás? Que histórias?.. Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
Camões acaba por amaldiçoar aqueles que puzeram nas ondas o primitivo madeirame de barcaças encimadas por uma vela. Eu não amaldiçoo ninguém, é óbvio; mas espanta-me, assusta-me, a leviandade com que se põe num palco, num estúdio, sujeito à verdadeira - e implacável - crítica do futuro, gente que nem sabe pegar num microfone para gemer a sua importância vocal, poética e musical...
De todos os actuais êxitos e aplausos ficará cinza, pó e nada. Ficará o fel das grandes ressacas, o sabor do papel de música que nunca se provou... E isso é tanto mais grave quanto não está provado que todos esses infelizes homenageados de hoje, gozados de um amanhã já próximo, sejam por natureza destituídos de jeito, capacidade de aprendizagem, até de certo talento para a arte que tanto amam, ainda que sem serem correspondidos... A música (tal como qualquer outra actividade profissional...) não vai nas cantigas de tais namorados: São fulanos que ostentam, na melhor das hipóteses, uma fachada razoável, mas que deixam logo a certeza de não terem o interior mobilado...
Nós podemos apreciar mais ou menos, muito, pouco ou mesmo nada, um determinado estilo, sem que isso nos leve a ignorar onde é que está um profissional, alguém que se sabe mexer, alguém que sabe cantar, que sabe tocar, que consegue indiscutivelmente transmitir uma ideia, um pensamento, uma filosofia... Essa filosofia pode desagradar-nos, até; mas a capacidade técnica ou artística de quem a comunica não deve ser posta em causa, sob risco de perdermos o desafio por abuso da autoconfiança, por ridícula estultícia e arrogância...
Portanto, não interessa, em princípio, saber se todos gostamos ou não da mesma música, se todos estamos de acordo com determinadas correntes de pensamento; trata-se, para já, de exigir que os seus defensores saibam exprimir-se, pois só a partir daí poderá haver discussão ou confronto de opiniões.
Não caindo na tendência altamente reaccionária de separar as formas dos conteúdos, temos que admitir que o mundo em que vivemos - ou sobrevivemos... - tem ao seu serviço expressões artísticas que definem as suas problemáticas, a sua ideologia, as suas coordenadas de pensamento: a música de uma sociedade poluída não pode ser límpida como um ribeiro de águas nascentes, não pode ter contornos sonoros definidos ou puríssimos, mas terá, necessariamente, de ser pastosa, poluente, insalubre, endémica. Na verdade, se consentimos que um rio seja sinónimo de esterqueira, como poderíamos aspirar a uma música de encantos pastorais onde pudéssemos mergulhar e nadar sem o perigo das mais abjectas contaminações?!
É evidente que este é o meu ponto de vista. Mas há quem defenda que toda a trampa vale a pena quando a ind ústria não épequena. Há quem colabore com as forças de manutenção deste mundo e que defenda como útil e indispensável a entrega a paraísos artificiais compensatórios do inferno em que transformaram a realidade concreta. Há quem defenda efectivamente a droga e a alienação, a ignorância das tragédias e das aberrações como forma de sobrevivência - e essa filosofia tem a sua música própria, assente numa estética correspondente e coerente.
Eu sou contra esse mundo, essa filosofia e essa música - e estou no meu direito, parece-me... Tal não significa, entretanto, que negue (seria absurdo fazê-lo!) a capacidade profissional dos seus mais eficazes defensores: são de tal modo eficientes que há milhões de pessoas que não reagem contra esse destino de inquilinos de uma sempre crescente lixeira, ou que julgam que para combater semelhantes perigos e ameaças bastará ouvir música e idolatrar cantores, o que deixa, naturalmente, uma invejável margem de manobra aos responsáveis pela esterqueira.. .
Pelo contrário, há grupos musicais entre nós cuja nulidade não permite discussão; é correspondente à sua total ausência de ideologia - direi mesmo de raciocínio em relação aos problemas sociais, culturais ou políticos... Mas essa nulidade permite que o grotesco macaqueamento de uma linguagem de teor neo-fascista, por exemplo, possa ser utilizado, sem atritos de qualquer espécie, numa festa de ideologia progressista - e vice-versa!
Mais ainda, estes párias da cultura são muito estimados e promovidos por todas as forças partidárias, tanto faz que cantem para uns como para outros, que mudem de candidato presidencial ou de grupo parlamentar como quem troca as cuecas. Essencial é que a sua mensagem seja absolutamente õca de sentido e que a própria forma como se exprimem não se arrisque a nenhuma definição de fins nem de princípios. É gente para usar e deitar fora. . .
Ora essa gente... é gente! Longe de os condenar como culpados, eu considero que esses lamentáveis grupos são as grandes vítimas de um sistema efectivamente infame, pluralista saga de uma anti-cultura militante, a castração da crítica, a busca a uma sociedade amorfa e conformada, apenas ruidosa, o muito barulho para nada, a ausência de uma vontade autêntica e actuante. Alguns desses actuais incapazes poderiam talvez deixar de o ser se seguissem um exemplo respeitável, uma filosofia concreta.
O símbolo de uma filosofia de participação e de responsabilização dos artistas e intelectuais nos destinos do mundo encontra-se na música e nas ideias de José Afonso.
É um disparate argumentar-se com a teoria de que ele não sabia música. Sabia a música de que necessitava para defender os seus conceitos. Poucos como ele foram capazes de tomar conhecimento do que podiam para fazerem depois o que queriam!
Em nenhuma obra de José Afonso se pode lamentar que ele não tivesse conhecimentos suficientes para se exprimir literária e musicalmente. Foi um artista que soube paradigmaticamente encontrar a forma que correspondia ao seu conteúdo ideológico, sem cedências nem transigências, sem qualquer vislumbre de conformismo ou de aceitação de uma menoridade: o que fazia era bem pensado, bem escrito, bem composto e bem cantado! José Afonso é hoje muito elogiado, nomeadamente por alguns que ele menos poderia suportar em termos artísticos - e não só... Mas isso não é grave. Antes pelo contrário, pode ser muito relevante se os homenageadores se esforçarem por aprender com o homenageado. Que se transformem, quanto possível, os amadores na coisa amada - e tudo ficará certo. . .
Não se trata de saber solfejo, leis de harmonia ou normas de contraponto. Nem mesmo se trata de conhecer muitas posições na guitarra. José Afonso nunca precisou disso... Do que ele nunca prescindiu foi de criar uma técnica própria, foi de evoluir artisticamente até ao ponto de ser, para todos os efeitos, um Mestre. E o caminho por ele percorrido passou, inevitavelmente, pela consciência de que toda a arte exprime um ideário, se orienta por conceitos estruturados com base naquilo em que se acredita e que se pretende defender.
Não vou sequer ao ponto de desejar que todos perfilhem - como eu tento perfilhar, na medida do meu possível - a linha ideológica pura e intransigente de José Afonso, um homem bafejado pela Razão e por um superior sentido de Justiça, valores que se pagam muito caro. . .
Penso, isso sim, que o simples respeito pelo artista que ele foi, o seguir do seu sistema de trabalho como padrão para o estabelecimento de um critério de valores profissionais, já poderia ajudar muita gente a enveredar por uma estrada digna e a livrar-se do juizo final de um público que aplaude, compra, consome... - mas, no fundo, não perdoa!
António Vitorino de Almeida
in Revista nº 1 da AJA de 1988
in Revista nº 1 da AJA de 1988
Leave your comment
Enviar um comentário