27 de julho de 2006

Era um redondo vocábulo

"Grande engano! Mísera sorte! Estranha confusão! ..." - são palavras utilizadas por Luís de Camões para definir alguns de­sastres do aventureirismo lusitano.. .
E não sei porquê - até porque o espírito que presidiu a essas aventuras se baseava num conhecimento profundo e altamente especializado da arte de marear, devendo-se os desastres a con­tigências próprias dos anseios descomedidos do Poder, e nunca a falhas gritantes de competência técnica... -, estas palavras in­cisivas do poeta renascentista vêm-me à memória sempre que penso nos sons da angustiosa indigência artística e intelectual produzidos por alguns grupos musicais portugueses com larga audiência no nosso caseiro mundo do espectáculo, afora alguns indeléveis recortes para o álbum das recordações excursionistas por terras de Espanha, alegria das famílias e orgulho patriótico de uma imprensa dita especializada...
A eminência parda que, em derradeira instância, sempre decide as eternas questiúnculas entre o "querer" e o "poder' é, indu­bitavelmente, o "saber"... Quem sabe, pode quando quer; quem não sabe, até ignora o que poderia se acaso quisse aprender... Para mim, a norma de conduta mais razoável e eficaz consiste em saber-se o que se pode e fazer-se, em função disso, o que se quer. Quem não sabe o que pode, acaba por fazer o que não quer. . . E quando vejo louvar e incentivar a actividade desses inválidos da música, o seu trôpego caminhar por sobre os calhaus ásperos de um som não dominado, por entre os cardos da inépcia mais grotesca, volto a lembrar-me do discurso camoneano, sou tentado a perguntar aos empresários, aos agentes, a certos críticos e jornalistas confessamente virgens de qualquer conhecimento técnico (ou mesmo histórico!...) Na matéria sobre que dissertam enquanto apoiam movimentos de tão previsível mau destino:
"A que novos desastres determinas de levar estes Reinos e esta gente? Que perigos, que mortes lhes destinas debaixo de algum nome proeminente? Que promessas de reinos e de minas de ouro, que lhe farás tão facilmente? Que famas lhe prometerás? Que histórias?.. Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
Camões acaba por amaldiçoar aqueles que puzeram nas ondas o primitivo madeirame de barcaças encimadas por uma vela. Eu não amaldiçoo ninguém, é óbvio; mas espanta-me, assusta-me, a leviandade com que se põe num palco, num estúdio, sujeito à verdadeira - e implacável - crítica do futuro, gente que nem sabe pegar num microfone para gemer a sua importância vocal, poética e musical...
De todos os actuais êxitos e aplausos ficará cinza, pó e nada. Ficará o fel das grandes ressacas, o sabor do papel de música que nunca se provou... E isso é tanto mais grave quanto não está provado que todos esses infelizes homenageados de hoje, gozados de um amanhã já próximo, sejam por natureza destituí­dos de jeito, capacidade de aprendizagem, até de certo talento para a arte que tanto amam, ainda que sem serem correspondi­dos... A música (tal como qualquer outra actividade profissio­nal...) não vai nas cantigas de tais namorados: São fulanos que ostentam, na melhor das hipóteses, uma fachada razoável, mas que deixam logo a certeza de não terem o interior mobilado...
Nós podemos apreciar mais ou menos, muito, pouco ou mesmo nada, um determinado estilo, sem que isso nos leve a ignorar onde é que está um profissional, alguém que se sabe mexer, al­guém que sabe cantar, que sabe tocar, que consegue indiscuti­velmente transmitir uma ideia, um pensamento, uma filosofia... Essa filosofia pode desagradar-nos, até; mas a capacidade té­cnica ou artística de quem a comunica não deve ser posta em causa, sob risco de perdermos o desafio por abuso da autocon­fiança, por ridícula estultícia e arrogância...
Portanto, não interessa, em princípio, saber se todos gostamos ou não da mesma música, se todos estamos de acordo com deter­minadas correntes de pensamento; trata-se, para já, de exigir que os seus defensores saibam exprimir-se, pois só a partir daí poderá haver discussão ou confronto de opiniões.
Não caindo na tendência altamente reaccionária de separar as formas dos conteúdos, temos que admitir que o mundo em que vivemos - ou sobrevivemos... - tem ao seu serviço expressões artísticas que definem as suas problemáticas, a sua ideologia, as suas coordenadas de pensamento: a música de uma sociedade poluída não pode ser límpida como um ribeiro de águas nascen­tes, não pode ter contornos sonoros definidos ou puríssimos, mas terá, necessariamente, de ser pastosa, poluente, insalubre, en­démica. Na verdade, se consentimos que um rio seja sinónimo de esterqueira, como poderíamos aspirar a uma música de en­cantos pastorais onde pudéssemos mergulhar e nadar sem o perigo das mais abjectas contaminações?!
É evidente que este é o meu ponto de vista. Mas há quem de­fenda que toda a trampa vale a pena quando a ind ústria não épequena. Há quem colabore com as forças de manutenção deste mundo e que defenda como útil e indispensável a entrega a pa­raísos artificiais compensatórios do inferno em que transforma­ram a realidade concreta. Há quem defenda efectivamente a droga e a alienação, a ignorância das tragédias e das aberrações como forma de sobrevivência - e essa filosofia tem a sua música própria, assente numa estética correspondente e coerente.
Eu sou contra esse mundo, essa filosofia e essa música - e estou no meu direito, parece-me... Tal não significa, entretanto, que negue (seria absurdo fazê-lo!) a capacidade profissional dos seus mais eficazes defensores: são de tal modo eficientes que há mi­lhões de pessoas que não reagem contra esse destino de inqui­linos de uma sempre crescente lixeira, ou que julgam que para combater semelhantes perigos e ameaças bastará ouvir música e idolatrar cantores, o que deixa, naturalmente, uma invejável margem de manobra aos responsáveis pela esterqueira.. .
Pelo contrário, há grupos musicais entre nós cuja nulidade não permite discussão; é correspondente à sua total ausência de ideologia - direi mesmo de raciocínio em relação aos problemas sociais, culturais ou políticos... Mas essa nulidade permite que o grotesco macaqueamento de uma linguagem de teor neo-fascista, por exemplo, possa ser utilizado, sem atritos de qualquer espécie, numa festa de ideologia progressista - e vice-versa!
Mais ainda, estes párias da cultura são muito estimados e pro­movidos por todas as forças partidárias, tanto faz que cantem para uns como para outros, que mudem de candidato presiden­cial ou de grupo parlamentar como quem troca as cuecas. Essen­cial é que a sua mensagem seja absolutamente õca de sentido e que a própria forma como se exprimem não se arrisque a nenhu­ma definição de fins nem de princípios. É gente para usar e deitar fora. . .
Ora essa gente... é gente! Longe de os condenar como culpados, eu considero que esses lamentáveis grupos são as grandes vítimas de um sistema efectivamente infame, pluralista saga de uma anti-cultura militante, a castração da crítica, a busca a uma so­ciedade amorfa e conformada, apenas ruidosa, o muito barulho para nada, a ausência de uma vontade autêntica e actuante. Al­guns desses actuais incapazes poderiam talvez deixar de o ser se seguissem um exemplo respeitável, uma filosofia concreta.
O símbolo de uma filosofia de participação e de responsabili­zação dos artistas e intelectuais nos destinos do mundo encon­tra-se na música e nas ideias de José Afonso.
É um disparate argumentar-se com a teoria de que ele não sabia música. Sabia a música de que necessitava para defender os seus conceitos. Poucos como ele foram capazes de tomar conhecimento do que podiam para fazerem depois o que queriam!
Em nenhuma obra de José Afonso se pode lamentar que ele não tivesse conhecimentos suficientes para se exprimir literária e musicalmente. Foi um artista que soube paradigmaticamente en­contrar a forma que correspondia ao seu conteúdo ideológico, sem cedências nem transigências, sem qualquer vislumbre de conformismo ou de aceitação de uma menoridade: o que fazia era bem pensado, bem escrito, bem composto e bem cantado! José Afonso é hoje muito elogiado, nomeadamente por alguns que ele menos poderia suportar em termos artísticos - e não só... Mas isso não é grave. Antes pelo contrário, pode ser muito relevante se os homenageadores se esforçarem por aprender com o homenageado. Que se transformem, quanto possível, os ama­dores na coisa amada - e tudo ficará certo. . .
Não se trata de saber solfejo, leis de harmonia ou normas de con­traponto. Nem mesmo se trata de conhecer muitas posições na guitarra. José Afonso nunca precisou disso... Do que ele nunca prescindiu foi de criar uma técnica própria, foi de evoluir artis­ticamente até ao ponto de ser, para todos os efeitos, um Mestre. E o caminho por ele percorrido passou, inevitavelmente, pela consciência de que toda a arte exprime um ideário, se orienta por conceitos estruturados com base naquilo em que se acredita e que se pretende defender.
Não vou sequer ao ponto de desejar que todos perfilhem - como eu tento perfilhar, na medida do meu possível - a linha ideo­lógica pura e intransigente de José Afonso, um homem bafejado pela Razão e por um superior sentido de Justiça, valores que se pagam muito caro. . .
Penso, isso sim, que o simples respeito pelo artista que ele foi, o seguir do seu sistema de trabalho como padrão para o estabe­lecimento de um critério de valores profissionais, já poderia ajudar muita gente a enveredar por uma estrada digna e a li­vrar-se do juizo final de um público que aplaude, compra, con­some... - mas, no fundo, não perdoa!

António Vitorino de Almeida
in Revista nº 1 da AJA de 1988

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