28 de julho de 2006

José Afonso trouxe canções que rebentavam diques, ideias feitas, praxes, estruturas

Eu teria então os meus quinze anos, e não gostava de quase nada do que se fazia na música portuguesa.
Nisso, devo dizer, não estava só.
Ora um país onde a gente nova não se reco­nhece, seja na música ou no resto, é um país doente, a precisar urgentemente de um doutor.
Ouvi então uma voz única, e vinha de facto de um doutor: chamavam-lhe, e chamava-se, Dr. José Afonso, à boa maneira coimbrã, pom­posa e c1assista; mas este doutor trazia canções que rebentavam diques, ideias feitas, praxes, estruturas. "O meu menino é de oiro, é de oiro só, hei-de levá-lo no meu trenó". O Zeca passou a ser o meu doutor particular, a minha referên­cia só pouco a pouco assimilada.
Em 1972, respondendo a uma carta que ele me tinha escrito (estava eu impedido de cá vir) respondi-lhe glosando a sua poética, fazendo sobre a música do Sr. Arcanjo uma nova letra, em jeito de dedicatória e homenagem. Hoje, quando a releio, descubro-a de certo modo pro­fética, não só na descrição metafórica dos anos que se seguiram, desde o 25 de Abril até hoje, como na própria referência ao olhar do Zeca, sempre atento e perspicaz, a última coisa a mor­rer quando ele já tão doente estava. Dizia assim a canção:

Eh Zeca Afonso
canto para ti
ainda era moço
quando te ouvi

Convite à dança
fizeste a quem
era criança
soube-me bem

Eh Zeca Afonso
mal tu sabias
que duro osso
que então roías

Menino de oiro
no teu trenó
foi mau agoiro
deixar-te só

As mafarricas
vieram todas
pobres ou ricas
celebram bodas

Disparam tiros
de tudo comem
até vampiros
e um lobisomem

E os surdos mudos
tapam os olhos
sopram canudos
catam piolhos

Coçam sovacos
abrem a cova
metem em sacos
a tua trova

Mas não te afobes
quem te amofina
só fez que sobes
na nossa estima

Há nas janelas
do teu olhar
duas donzelas
ainda a espreitar

Olham para o mundo
para o alecrim
respiram fundo
cantas assim

Senhor arcanjo
Vamos dançar
afina o banjo
pelo luar

Sérgio Godinho

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