Excerto de uma entrevista mais alargada a António Pinho Brojo, histórico guitarrista de Coimbra, liderada por António Manuel Nunes, que podem ler na íntegra no blog do guitarrista Octávio Sérgio - http://guitarradecoimbra.blogspot.com
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AMN: Estamos a caminhar para os finais dos anos 40…
APB: Sim. Entretanto aparece o Zeca Afonso, à volta de 1948, também cantando exclusivamente o fado tradicional. Eu, em 1952, exactamente, fiz discos de 78 rotações com o José Afonso, Luiz Goes e Fernando Rolim. É, digamos, depois dos discos do Menano, do Paradela, do Lucas Junot, a primeira vez que são lançados discos de 78 rotações com os três cantores que depois vieram a ser uma Segunda Geração de Ouro. O Luiz Goes, repare, trazia atrás de si um património musical formidável. O tio dele, o Armando Goes, tinha, como sabe, o estilo que nem sempre era o do fado tradicional. Ele insistiu no fado lisboeta, cantou sonetos e o Luiz Goes continuou a herança do tio.
AMN: Estes discos de 1952 eram já um projecto artístico diferenciado em relação às heranças recebidas? Gravou apenas porque havia necessidade de novos discos no mercado, pensou, estudou, ensaiou, ou as gravações foram espontâneas?
APB: Não! Foi um projecto diferente. Não foi espontâneo. Com a aproximação dos Anos 50, aí por 1951, eu venho para Coimbra, para a Universidade. Em minha casa surge uma tertúlia, a Tertúlia do Calhabé. Tertúlia com quem? Com um sujeito que ainda está vivo e que é funcionário da Assistência Social, que era o José Rodrigues, um apaixonado pelo estilo do Artur Paredes e seu conviva. Ele era sobretudo um cultor da guitarra, da guitarra do Artur Paredes e teve uma grande importância na minha formação e na do Portugal também. E com o José Rodrigues e com o Florêncio Neto de Carvalho – que era um homem que tinha uma virtude extraordinária. Conhecia muito bem o fado de Coimbra e sabia interpretar (=imitar) o estilo de cada um dos cantores da Primeira Geração de Ouro, então resolvemos chamar o Fernando Rolim, o Zeca, o Goes e o Machado Soares que entrou mais tarde. E resolvemos que as coisas tinham caído numa tal decadência…
AMN. Vocês tinham consciência dessa “decadência” artística?
APB: Tivemos a noção dessa crise e pensámos “nós temos de fazer um estudo das raízes!” Com o trabalho discográfico do Artur Paredes e o apoio do José Rodrigues surge um “Renascimento”. Em minha casa começámos a fazer exactamente esse trabalho. O Florêncio de Carvalho o que é que fazia? Quando aparecia um rapaz, ele dizia, “ó pá, tu tens uma voz estupenda para cantar, eu vou-te ensinar fados do Bettencourt como ele os cantava”. E depois cantava-lhe à maneira do Bettencourt, do Paradela, do Menano. Depois corrigia o cantor, obrigava-o a dizer o poema. Havia toda uma aprendizagem que era no sentido de primeiro saber o que estava a cantar, reproduzir o conteúdo do poema e dar-lhe depois expressão na música dentro do estilo. Outros teriam um estilo mais parecido com o Menano… de facto, houve um trabalho de sapa, de estudo e de recolha, de regresso às raízes dos anos 20. Mas atenção, o Florêncio representava já algo de progresso, introduzia já o seu contributo. O Florêncio também cantava, embora tivesse problemas de garganta e tivesse muitas vezes dificuldades de cantar, mas sobretudo tinha uma expressividade extraordinária.
Os discos surgem como consequência desse treino, desse estudo. Os discos aparecem, deliberadamente, como uma forma de afirmação e de “reposição”.
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AMN: Estamos a caminhar para os finais dos anos 40…
APB: Sim. Entretanto aparece o Zeca Afonso, à volta de 1948, também cantando exclusivamente o fado tradicional. Eu, em 1952, exactamente, fiz discos de 78 rotações com o José Afonso, Luiz Goes e Fernando Rolim. É, digamos, depois dos discos do Menano, do Paradela, do Lucas Junot, a primeira vez que são lançados discos de 78 rotações com os três cantores que depois vieram a ser uma Segunda Geração de Ouro. O Luiz Goes, repare, trazia atrás de si um património musical formidável. O tio dele, o Armando Goes, tinha, como sabe, o estilo que nem sempre era o do fado tradicional. Ele insistiu no fado lisboeta, cantou sonetos e o Luiz Goes continuou a herança do tio.
AMN: Estes discos de 1952 eram já um projecto artístico diferenciado em relação às heranças recebidas? Gravou apenas porque havia necessidade de novos discos no mercado, pensou, estudou, ensaiou, ou as gravações foram espontâneas?
APB: Não! Foi um projecto diferente. Não foi espontâneo. Com a aproximação dos Anos 50, aí por 1951, eu venho para Coimbra, para a Universidade. Em minha casa surge uma tertúlia, a Tertúlia do Calhabé. Tertúlia com quem? Com um sujeito que ainda está vivo e que é funcionário da Assistência Social, que era o José Rodrigues, um apaixonado pelo estilo do Artur Paredes e seu conviva. Ele era sobretudo um cultor da guitarra, da guitarra do Artur Paredes e teve uma grande importância na minha formação e na do Portugal também. E com o José Rodrigues e com o Florêncio Neto de Carvalho – que era um homem que tinha uma virtude extraordinária. Conhecia muito bem o fado de Coimbra e sabia interpretar (=imitar) o estilo de cada um dos cantores da Primeira Geração de Ouro, então resolvemos chamar o Fernando Rolim, o Zeca, o Goes e o Machado Soares que entrou mais tarde. E resolvemos que as coisas tinham caído numa tal decadência…
AMN. Vocês tinham consciência dessa “decadência” artística?
APB: Tivemos a noção dessa crise e pensámos “nós temos de fazer um estudo das raízes!” Com o trabalho discográfico do Artur Paredes e o apoio do José Rodrigues surge um “Renascimento”. Em minha casa começámos a fazer exactamente esse trabalho. O Florêncio de Carvalho o que é que fazia? Quando aparecia um rapaz, ele dizia, “ó pá, tu tens uma voz estupenda para cantar, eu vou-te ensinar fados do Bettencourt como ele os cantava”. E depois cantava-lhe à maneira do Bettencourt, do Paradela, do Menano. Depois corrigia o cantor, obrigava-o a dizer o poema. Havia toda uma aprendizagem que era no sentido de primeiro saber o que estava a cantar, reproduzir o conteúdo do poema e dar-lhe depois expressão na música dentro do estilo. Outros teriam um estilo mais parecido com o Menano… de facto, houve um trabalho de sapa, de estudo e de recolha, de regresso às raízes dos anos 20. Mas atenção, o Florêncio representava já algo de progresso, introduzia já o seu contributo. O Florêncio também cantava, embora tivesse problemas de garganta e tivesse muitas vezes dificuldades de cantar, mas sobretudo tinha uma expressividade extraordinária.
Os discos surgem como consequência desse treino, desse estudo. Os discos aparecem, deliberadamente, como uma forma de afirmação e de “reposição”.
AMN: Quais foram as reacções aos discos?
APB: Foi óptimo, foi óptimo!
AMN: Havia uma lacuna fonográfica de quase 30 anos…
APB: Não era fácil. As empresas de gravação eram poucas e não tinham muitos meios. O Fado de Coimbra estava num gueto, verdadeiramente num gueto! Ainda hoje lhe devo dizer uma coisa, o grande mal disto tudo está em a Canção de Coimbra ser sempre associada restritamente ao meio de Coimbra, é sempre considerada como uma música urbana muito local. Nunca adquiriu um estatuto na música ligeira portuguesa, ao contrário do Fado de Lisboa. Ainda hoje na rádio, é difícil, é raro, pode contar pelos dedos o número das situações em que está a ouvir música diversa e no meio da música sai uma canção de Coimbra. É raro! Felizmente que aparece, mas é raro.
Tinha havido ali um hiato tremendo e aqueles discos tiveram uma enorme aceitação. Os discos foram gravados aqui em Coimbra no Emissor Regional, em condições muito fracas, e depois passadas a 45 rotações e 33 rotações e cassetes. O Portugal já nessa altura entrou. Foi o meu 2º guitarra nesses discos. Quando eu me vou embora para a Suiça em 1954 – o meu trajecto vai até 54, de 1943-1944 até 54 - , o Portugal vai continuar o nosso trabalho.
Em toda a minha época, eu cito o João Bagão, cito o José Maria Amaral, o Carvalho Homem, o Manuel Branquinho (embora o Manuel Branquinho nunca tenha sido um guitarrista, em meu entender, eu sou oficial do mesmo ofício, que se tivesse afirmado muito significativamente. Quando reaparece, mais tarde, é a cantar). Como violas eram o Aurélio Reis, que já era uma figura habitual, era o Eduardo Tavares de Melo, o Mário Castro. Na minha geração isto foi o núcleo fundamental.
APB: Foi óptimo, foi óptimo!
AMN: Havia uma lacuna fonográfica de quase 30 anos…
APB: Não era fácil. As empresas de gravação eram poucas e não tinham muitos meios. O Fado de Coimbra estava num gueto, verdadeiramente num gueto! Ainda hoje lhe devo dizer uma coisa, o grande mal disto tudo está em a Canção de Coimbra ser sempre associada restritamente ao meio de Coimbra, é sempre considerada como uma música urbana muito local. Nunca adquiriu um estatuto na música ligeira portuguesa, ao contrário do Fado de Lisboa. Ainda hoje na rádio, é difícil, é raro, pode contar pelos dedos o número das situações em que está a ouvir música diversa e no meio da música sai uma canção de Coimbra. É raro! Felizmente que aparece, mas é raro.
Tinha havido ali um hiato tremendo e aqueles discos tiveram uma enorme aceitação. Os discos foram gravados aqui em Coimbra no Emissor Regional, em condições muito fracas, e depois passadas a 45 rotações e 33 rotações e cassetes. O Portugal já nessa altura entrou. Foi o meu 2º guitarra nesses discos. Quando eu me vou embora para a Suiça em 1954 – o meu trajecto vai até 54, de 1943-1944 até 54 - , o Portugal vai continuar o nosso trabalho.
Em toda a minha época, eu cito o João Bagão, cito o José Maria Amaral, o Carvalho Homem, o Manuel Branquinho (embora o Manuel Branquinho nunca tenha sido um guitarrista, em meu entender, eu sou oficial do mesmo ofício, que se tivesse afirmado muito significativamente. Quando reaparece, mais tarde, é a cantar). Como violas eram o Aurélio Reis, que já era uma figura habitual, era o Eduardo Tavares de Melo, o Mário Castro. Na minha geração isto foi o núcleo fundamental.
AMN: Carlos Figueiredo, era um homem marginal a estes meios?
APB: O Figueiredo (risos)… você já se apercebeu que o meio é fechado e pequeno… há certas rivalidades. Há sempre uns ditos de bastidores, umas piadas. Nessa altura também havia essa mesma rivalidade. Ainda que, o João Bagão, o José Maria Amaral e o Carvalho Homem tivessem actuado muitas vezes em conjunto, de tal maneira que o José Maria Amaral foi 2º guitarra do João Bagão, depois o José Maria Amaral autonomiza-se e constitui o seu próprio grupo em que eu entrei como 2º guitarra, depois o José Maria Amaral vai-se embora e eu fico com o Carvalho Homem… Eu não tinha problemas, integrava-me facilmente embora sentisse as rivalidades, que então nos cantores eram “notáveis”. No meu grupo não, o Fernando Rolim, o Luiz Goes e o Zeca Afonso iam cantar a minha casa e havia entre nós um grande entrosamento.
Com havia as estrelas, o Figueiredo, a quem nós chamávamos o Figueiralho (risos), era um homem que não era um violista de primeira água, embora tivesse o seu mérito, era sempre o violista substituto. E então utilizou um sistema curioso: quando arranjava um cantor muito bom, dizia-lhe “eu ponho-o a cantar mas você fica comigo”. Havia este sistema também na altura. Como você sabe os cantores foram sempre adstritos a grupos e de certa maneira era difícil a um cantor ir com um outro grupo, era visto como uma traição aos seus companheiros. Isto já existia.
Muitas vezes o Figueiredo integrava-se nestes grupos, mas sempre com a sensação de que era um elemento de substituição. O que o Figueiredo tinha era coisa extraordinária, apesar de ser um tipo de importância menor, boi um belíssimo compositor. Fez fados tradicionais muito bem feitos, que nós aproveitámos, o “Adeus Sé Velha saudosa”, o “Ondas do Mar”, “O Sol anda lá no Céu”. O Zeca Afonso nessa altura era um cantor tradicional, tendo uma voz de pouca amplitude. Tinha uma voz fraca para cantar o fado tradicional. O ele ter explorado a balada, não há dúvida nenhuma que é esse o tipo de música que ele, já nessa altura, considerava mais adequado à sua maneira de ser e para as suas possibilidades vocais. Aliás, ele tinha uma coisa muito curiosa. Eu posso-lhe contar um episódio. Fomos fazer aí um espectáculo e ele cantou o “Águia que vais tão alta” maravilhosamente. Deram-lhe aplausos. E no fim há um sujeito, um antigo estudante, um velhinho, que vai ter com ele e lhe diz “Você é realmente um cantor extraordinário e deve ser muito feliz”. E diz ele, “Você está enganado”, e acrescenta com aquele ar dele “Eu nem gosto do Fado de Coimbra”. Isto mostra que realmente o Zeca Afonso tinha de evoluir para outro tipo de música.
APB: O Figueiredo (risos)… você já se apercebeu que o meio é fechado e pequeno… há certas rivalidades. Há sempre uns ditos de bastidores, umas piadas. Nessa altura também havia essa mesma rivalidade. Ainda que, o João Bagão, o José Maria Amaral e o Carvalho Homem tivessem actuado muitas vezes em conjunto, de tal maneira que o José Maria Amaral foi 2º guitarra do João Bagão, depois o José Maria Amaral autonomiza-se e constitui o seu próprio grupo em que eu entrei como 2º guitarra, depois o José Maria Amaral vai-se embora e eu fico com o Carvalho Homem… Eu não tinha problemas, integrava-me facilmente embora sentisse as rivalidades, que então nos cantores eram “notáveis”. No meu grupo não, o Fernando Rolim, o Luiz Goes e o Zeca Afonso iam cantar a minha casa e havia entre nós um grande entrosamento.
Com havia as estrelas, o Figueiredo, a quem nós chamávamos o Figueiralho (risos), era um homem que não era um violista de primeira água, embora tivesse o seu mérito, era sempre o violista substituto. E então utilizou um sistema curioso: quando arranjava um cantor muito bom, dizia-lhe “eu ponho-o a cantar mas você fica comigo”. Havia este sistema também na altura. Como você sabe os cantores foram sempre adstritos a grupos e de certa maneira era difícil a um cantor ir com um outro grupo, era visto como uma traição aos seus companheiros. Isto já existia.
Muitas vezes o Figueiredo integrava-se nestes grupos, mas sempre com a sensação de que era um elemento de substituição. O que o Figueiredo tinha era coisa extraordinária, apesar de ser um tipo de importância menor, boi um belíssimo compositor. Fez fados tradicionais muito bem feitos, que nós aproveitámos, o “Adeus Sé Velha saudosa”, o “Ondas do Mar”, “O Sol anda lá no Céu”. O Zeca Afonso nessa altura era um cantor tradicional, tendo uma voz de pouca amplitude. Tinha uma voz fraca para cantar o fado tradicional. O ele ter explorado a balada, não há dúvida nenhuma que é esse o tipo de música que ele, já nessa altura, considerava mais adequado à sua maneira de ser e para as suas possibilidades vocais. Aliás, ele tinha uma coisa muito curiosa. Eu posso-lhe contar um episódio. Fomos fazer aí um espectáculo e ele cantou o “Águia que vais tão alta” maravilhosamente. Deram-lhe aplausos. E no fim há um sujeito, um antigo estudante, um velhinho, que vai ter com ele e lhe diz “Você é realmente um cantor extraordinário e deve ser muito feliz”. E diz ele, “Você está enganado”, e acrescenta com aquele ar dele “Eu nem gosto do Fado de Coimbra”. Isto mostra que realmente o Zeca Afonso tinha de evoluir para outro tipo de música.
AMN: Chegou a acompanhar essa evolução?
APB: Não, não acompanhei, porque eu depois da Suiça, aí por 1959, afastei-me. Foi uma fase muito difícil para mim, porque eu preparava a minha tese de doutoramento. Eu doutoro-me em 1961.
Guitarrista que aparece nessa altura com uma pujança formidável é o Jorge Tuna, o Portugal que vem de mim, da minha geração, mas que começa a compor e, sobretudo, já com os poemas do Manuel Alegre a fazer as trovas e baladas. O Portugal acompanha o Zeca Afonso, o Adriano Correia de Oliveira, o António Bernardino. É curioso, o António Bernardino fez lembrar na altura em que apareceu uma espécie, como é que eu hei-de dizer, de Manuel Julião. Um homem versátil, cantava tudo, fado clássico sim, gostava muito dos fados do Ângelo de Araújo, a canção. Eu até 1961 não participei, ainda que uma vez ou outra acompanhasse o Zeca Afonso, sobretudo em férias.
APB: Não, não acompanhei, porque eu depois da Suiça, aí por 1959, afastei-me. Foi uma fase muito difícil para mim, porque eu preparava a minha tese de doutoramento. Eu doutoro-me em 1961.
Guitarrista que aparece nessa altura com uma pujança formidável é o Jorge Tuna, o Portugal que vem de mim, da minha geração, mas que começa a compor e, sobretudo, já com os poemas do Manuel Alegre a fazer as trovas e baladas. O Portugal acompanha o Zeca Afonso, o Adriano Correia de Oliveira, o António Bernardino. É curioso, o António Bernardino fez lembrar na altura em que apareceu uma espécie, como é que eu hei-de dizer, de Manuel Julião. Um homem versátil, cantava tudo, fado clássico sim, gostava muito dos fados do Ângelo de Araújo, a canção. Eu até 1961 não participei, ainda que uma vez ou outra acompanhasse o Zeca Afonso, sobretudo em férias.
AMN: E ele já em ruptura?
APB: Já! Ele passou férias em minha casa no Algarve, várias vezes, ele era um homem despegado do dinheiro e às tantas chegava ao meio do mês de Agosto e não tinha o dinheiro e ia para minha casa para ter autonomia. Era realmente um artista, um poeta. E nessa altura acompanhei-o, por exemplo na “Balada do Outono” e numa série de canções que ele fez por essa altura. Eu encontrei-me perante um Zeca Afonso a cantar coisas completamente diferentes.
APB: Já! Ele passou férias em minha casa no Algarve, várias vezes, ele era um homem despegado do dinheiro e às tantas chegava ao meio do mês de Agosto e não tinha o dinheiro e ia para minha casa para ter autonomia. Era realmente um artista, um poeta. E nessa altura acompanhei-o, por exemplo na “Balada do Outono” e numa série de canções que ele fez por essa altura. Eu encontrei-me perante um Zeca Afonso a cantar coisas completamente diferentes.
AMN: Na Crise Académica de 1969 estava em Coimbra?
APB: Estava em Coimbra.
APB: Estava em Coimbra.
AMN: É correcto afirmar-se, como às vezes se diz, que em 1969 se produziu o disco “Flores para Coimbra”, os cantores desertaram e tudo acabou?
APB: A Crise de 1969 provocou um “bouleversement” em Coimbra.
AMN: A linha clássica era apodada de “reaccionária” e de “fascista”…
APB: Exacto. O fado tradicional e a guitarra foram identificados com o regime, com uma carga negativa. Mas nunca até aí o fado tradicional e a guitarra tinham sido identificados com o regime. Normalmente no meio havia contestatários. Muitos guitarristas e cantores eram tipos normalmente não “arregimentáveis”. É evidente que se dizia “é um fado reaccionário”, “é um fado conservador”. É o próprio regime ou as figuras afectas ao regime que agarram o fado de Coimbra armados em protectores, independentemente, meu caro Nunes, de um certo feitio sempre conservador do antigo estudante de Coimbra. Se um velho está sempre a dizer “no meu tempo é que era bom”, o antigo estudante de Coimbra também diz “no meu tempo é que era bom, assim e assado”. Inclusivamente, eu, neste momento, sou capaz de já ser um conservador! Eu já estou a entrar na idade do conservadorismo.
AMN: Assiste-se efectivamente a uma dispersão de cultores com a Crise de 1969?
APB: Há uma dispersão e uma desmotivação dos cultores. 1969 foi um momento tremendo. E repare, se nós quisermos ser justos relativamente ao Zeca Afonso, eu recordo-me perfeitamente dele ter afirmado por volta de 1974 que não queria guitarras a acompanhá-lo, que não queria “raquetes” a acompanhá-lo, como ele chamava à guitarra. Ele não cantava fado de Coimbra. Fado de Coimbra era uma coisa abominável. Ele aí teve também um papel de certa maneira prejudicial. Prejudicou o fado de Coimbra. Depois ele fez contrição. E quando edita o disco de fado de Coimbra (1981) ele vem desdizer tudo quanto tinha afirmado. Isto significa que a partir de 1969, e indo até 1974, há enorme confusão.
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