13 de setembro de 2006

“Mal estar docente” atingiu limites intoleráveis

Já tem anos o conceito de “mal estar docente”. Um pouco por todo o mundo os professores têm vindo a revelar um mal estar cada vez maior. Esse sentimento está relacionado com vários factores, entre eles a insatisfação com as condições em que se exerce a profissão e com os fracos resultados obtidos em relação ao grande investimento pessoal e profissional de cada um. O sentimento de mal estar agrava-se quando os professores percebem não ter autonomia para apontar os principais problemas com que se debatem e com o facto de não lhes permitirem contribuir de forma efectiva para a resolução desses problemas.

Em Maio de 2005, com base em dados de uma sondagem, redigi uma notícia na qual dava conta de como se sentiam os professores franceses em relação a este sentimento de mal estar. Escrevia a dado passo:

«De acordo com uma sondagem realizada pelo Snes-FSU, principal sindicato francês do secundário, cerca de metade dos professores franceses afirma que o ritmo de trabalho e o barulho são as principais causas do cansaço na profissão, com 17 por cento a afirmar ter dificuldades permanentes em recuperar fisicamente após um dia de trabalho.

O inquérito, conduzido junto de 2200 professores do ensino secundário revela também que a indisciplina e a violência praticada por alunos é considerada “insuportável” por 32 por cento dos inquiridos, a que se seguem factores como a pressão da administração ou a falta de condições materiais.

O estudo salienta que apenas 15 por cento dos professores afirma não sofrer de qualquer problema de saúde decorrente do exercício da profissão, com os restantes a citarem o esgotamento físico e nervoso (58%), problemas de sono (31%) problemas de voz (26%, dos quais 37% têm menos de 30 anos) e problemas musculares e articulatórios (19%).

Nos estabelecimentos de ensino que não beneficiam do dispositivo ZEP [apoio aos estabelecimentos em zonas problemáticas] mas que são igualmente considerados problemáticos, cerca de um em cada três professores (28%) tem dificuldades permanentes em recuperar das mazelas do quotidiano. De acordo com a sondagem, estes sintomas de fadiga e angústia associados à profissão devem-se sobretudo à atitude dos alunos (30%) mas também à dificuldade dos professores em concretizar o sucesso educativo (32%).

Na opinião de Elisabeth Labaye, secretária nacional do Snes, os resultados deste estudo demonstram “um comportamento desleixado e indigno por parte da entidade empregadora [o Estado] em relação aos seus trabalhadores. Um patrão do sector privado, nestas condições, seria sancionado”, acrescenta».

Em relação ao “mal estar docente”, o que está agora a acontecer em Portugal? É óbvio que a nossa entidade patronal, em vez de estudar e atacar as causas da doença que afecta os professores e o sistema, decidiu atacar os doentes responsabilizando-os pelos males de que eles e o sistema padecem.

Neste curto espaço do editorial não poderemos analisar e comentar, com o mínimo de rigor e de interesse prático, as políticas atabalhoadas que a equipa ministerial tem vindo a protagonizar. Limito-me a sublinhar o que já foi dito por muita gente com algum conhecimento e bom senso, que as considero voluntaristas, primárias, desastradas, limitadas, disparatadas, desajustadas e erradas. Neste jornal vários colaboradores abordam aspectos destas políticas. Em próximos números teremos ocasião de tratar com rigor outros aspectos das propostas.

Não posso deixar de sublinhar dois aspectos da política educativa do actual governo. É claro nas propostas o propósito fundamental de diminuir os custos com os salários do pessoal. Se esta proposta de carreira for por diante, quem fizer contas concluirá que de forma progressiva os custos reais com os salários dos docentes descerão, a médio prazo, para metade dos valores actuais. Uma consequência imediata desta proletarização será a de fazer com que no futuro só venham para a profissão os falhados e incapazes.

Um segundo aspecto tem a ver com o que há anos designo por “rentabilização política” dos professores. Noutros escritos descrevi de forma mais pormenorizada o processo. Mas resumo: é notório nos países mais desenvolvidos que os sistemas públicos de educação, herdados da sociedade industrial, estão em pré­‑falência ou já falidos e a precisarem de ser reinventados. As orientações das organizações internacionais [FMI, Banco Mundial, OCDE] não vão no sentido de apostar no sector público. Pelo contrario, defendem a transformação da educação numa mercadoria e a educação em negócio. Ao sector público deixam o encargo de educar, a baixo custo, o “lixo social”.

A concretização desta política privatizadora precisa da criação de um clima político propício. É para isso que, em vez de resolver os problemas, se fomenta o bota-abaixo e o alarido público — muito apoiado e incentivado pela Nova Direita, a que eu chamo, em Portugal, «as carpideiras da educação nacional» [1].

Os governos para evitarem que este descontentamento público, por si empolado, recaia sobre si, encontram nos professores o bode expiatório da critica pública. Este estratagema político ajuda a impor políticas mais baratas, a promover medidas de maior controlo burocrático, a desviar dos governos a crítica pública e desenvolve o clima que irá facilitar futuramente os processos de privatização. Atente-se no que se ouve dizer da nossa ministra: “é corajosa... acabou com os privilégios dos professores... pôs os professores a trabalhar... vai premiar o mérito e castigar a preguiça... vai quebrar a espinha à Fenprof..., etc.”. É assim que se desvia a atenção dos problemas reais do ensino e se cria o clima para a solução final: a futura privatização salvadora. E é assim que se cai nas boas graças da direita.

A Nova Direita em Portugal vai dizendo o que quer e batendo palmas ao modelo que deseja. Blair, na Inglaterra, iniciou em Maio último a privatização do sector público da educação — não dos títulos de propriedade das escolas públicas, mas da sua administração e gestão e, através desta, de tudo o resto. Privatização altamente vantajosa para os privados. O Estado paga e os privados exploram e orientam moral e politicamente o sistema segundo os seus interesses de classe [2]. Convém não nos iludirmos com as medidas anunciadas por cá. Sendo voluntaristas e ingénuas na sua estruturação, elas abrem o caminho para a aplicação futura das políticas privatizadoras decretadas pelos centros de decisão mundial. Esse é o desígnio.

O “mal estar docente” em Portugal é hoje uma realidade que dói de forma gritante a milhares de docentes. Dói­‑nos sobretudo o esforço inglório que colocamos no nosso trabalho, a injustiça e o insulto gratuito, o autoritarismo estúpido, a proletarização da profissão. Mas nós continuamos cidadãos e professores. E, como lembra o professor finlandês Tero Autio na entrevista que nos dá neste jornal, «a esperança é uma espécie de obrigação profissional para um educador» [3]. É por isso que não nos podemos dispensar de nos envolver nos debates sobre a sociedade, a justiça social, a educação e o futuro da nossa profissão.

Dominadas pelo egoísmo e pelo desejo do lucro máximo e imediato, as nossas sociedades correm para o abismo. O poder dominante procura matar a própria ideia de progresso e apresenta-nos o retrocesso como desígnio nacional e meio de salvação. O Mundo move-se no sentido da criação de uma sociedade bipolar: uma pequeníssima elite superpoderosa formada à custa da miserabilização da maioria esmagadora da população. Como educadores, cabe-nos defender a civilização da barbárie aberta ou encoberta. Hoje e aqui, essa defesa também passa por nos sabermos opor criticamente às políticas educativas que estão a ser impostas.

José Paulo Serralheiro A Página

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