9 de setembro de 2006

Recitativos de Rui Mendes dedicados a José Afonso

I
E há apenas isto: um homem, companheiro de estrelas e de remos, no arrasto da nossa esperança, rodeado de prados e agruras, e afolhagem de certa guitarra encarnada.

II
E esse homem, pregoeiro da brisa da madrugada, de pulso livre e coração descoberto, à mesa tingida pela luz a que nos sentamos sempre, apenas canta, apenas joeira palavras e miséria, pressagiando coisas bem afortunadas: um céu azul, sem vínculos, sobre o relento do nosso chapéu e um laranjal para o alfange do mendigo.

III
E é um cantar amargo, um cantar de amigo, colher de vento, fímbria do trigo, o que nos deixa a voz garrida desse homem, exonerado do seu próprio chão, ó chão castrado d'alegria, com o olhar pregado nas ruelas atulhadas pelo silvo das crianças do mondego ou na flauta, crivo de águias, de bensafrim.

IV
Ó terreiros da erva, ó terreiros da fome, ó íngremes quebradas do medronho, ó ror de dores, ó ror d'amores, quanto ror de foices tínhamos presas aos pulsos para rasgar, ao sabor dos vales do vento, este pedaço de terra morta e devassada, onde cresce a nossa ira, que as bagas do mar ferviam, junto aos campos cor de lima e de limão.

V
E esse homem, no fresco tingir da outra margem, vigia a crista das colinas, rasga janelas nas ribeiras, remonta às eiras onde as nossas costas são flor da rosa e suão, e queima, no tear das trovas, a dor panfletária das noites e dos dias, e vai-se juntando, como um pensamento puro e repercutido no ladrar dos cães, à garganta dos caminhos, aos vãos das escadas onde dorme a erva cidreira, lavando a luz dos nossos olhos, pernoitando também o olhar nos nossos pra­tos vazios, enquanto os nossosfilhos vazam grandes eiras de sal, sôbolos rios que vão por babilónia.

VI
E essa voz assim cerzida, memória de romãs e arestas cruas, assim aberta a todos os homens que chegam, a todos os homens que partem - amigos e inimigos são a província e a colheita do seu sonho - essa voz, fermento e febre de terno regadio, eis que nos é promessa dum grande dia sobre as pedras manchadas pelas nossas toalhas de malva: as nossas mãos, em pleno tumulto de armas e auroras, ditando o peso e a sentença que carregavam.

VII
E, no usufruto das clareiras que rasgamos por toda a parte, das bandeiras que desfráldamos até às vertentes dos muros e das amuradas, esse homem de novo começa a cantar:fragorde sarças sobre a sombra dos ombros, passos e pássaros na descarga do limiar das noites e dos dias para outros promontórios, e a gadanha movendo a substância putrificada dos presídios e das mansões, e a cor liminar das laranjas do mar, e o azul arável do céu, tudo, por assim dizer, que enchesse, como um frémito, o leito dos rios, a estrela das montanhas, macerando folhas de acanto.

VIII
E assim vos digo: esta voz sobe a prumo e é a folha púrpura das casas, quando amanhece, e é o rumo do pastor, céu abaixo: com a sua manta de açafrão e suas pombas bravas, e é a rede que se lança sobre as abelhas, logo que atravessadas pelas linhas do fogo, e é a fresca flor da nossa mão em vão julgada.
Voz dentro sangue, matriz do nosso sangue, terra indivisa: sangue e rosas.

in "Cantares" | Fora do texto, 1995 | 4ª edição

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