José Afonso, Zeca, para toda a gente, continua a ser um dos nomes maiores da música portuguesa. Dono de uma voz admirável, foi simultaneamente um militante da utopia. Conhecido como cantor de intervenção, Zeca Afonso soube criar temas que aliavam a tradição musical portuguesa ao combate político. Foi um cidadão comprometido com a política e a sociedade. A canção “Grândola Vila Morena” transformou-se no hino do 25 de Abril. “Um grande criador e um grande inovador”, afirma a actriz Maria do Céu Guerra.
Zeca Afonso foi um cantor - e um militante - da utopia. A sua vida atraiu-o cada vez mais vigorosamente rumo à irreverência. Zeca nunca se arrependeu de nada. Como o próprio disse, “acreditava o suficiente no que estava a fazer, e isso é o que fica”. E o que é que ficou da sua vida? Uma obra imensa composta por canções que, para a historiadora Irene Pimentel, “acabaram por transformar-se em hinos”. Grande parte da sua vida discorreu por entre as cordas enigmáticas da guitarra. Zeca Afonso foi um cidadão militante da utopia, daquela “que não é só pensá-la, não é só sonhá-la”, como diz a actriz Maria do Céu Guerra. Era um artista assumidamente ideológico, mas ao mesmo tempo muito envolvido com o seu tempo. Procurou sempre o coração profundo da música. Cantava com tal intensidade que dava a impressão de que só para a música havia nascido. José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos nasceu em 2 de Agosto de 1929 em Aveiro. O seu pai, José Nepomuceno Afonso, era juiz, e a sua mãe, Maria das Dores, professora primária. Em 1930 os pais foram para Angola. Por razões de saúde o recém-nascido José Afonso permaneceu em Aveiro, em casa de uns tios. Por insistência da mãe, viajou para Angola em 1933. A imensidão e beleza de África deslumbraram-no. Criou uma ligação afectiva que iria acompanhá-lo ao longo da vida. Os anos de 1936 a 1938 foram passados a viajar entre Portugal e as colónias. Em 1938 regressou a Portugal para completar os estudos. Foi viver para casa de um tio em Belmonte. Chegado o ano de 1940, partiu para Coimbra e matriculou-se no Liceu D. João III. Zeca Afonso estava no quinto ano do liceu quando abraçou convictamente a vida boémia e passou a cantar de forma assídua. Passado algum tempo, a sua voz já ecoava pela cidade velha. Em 1948, após dois chumbos, completou o liceu e abraçou por completo a vida de farra universitária. Jogou futebol pela Académica e fez parte tanto do Orfeão Académico como da Tuna Académica da Universidade de Coimbra. Neste ano, apaixonou-se por Maria Amália de Oliveira, uma costureira de origem humilde. Casaram em segredo devido à oposição dos pais. Zeca entrou no curso de Ciências Histórico-Filosóficas, da Faculdade de Letras, em 1949. Em Janeiro de 1953, nasceu o primeiro de quatro filhos. Zeca dava explicações e fazia revisão no “Diário de Coimbra”. Nesse ano saíram os seus primeiros discos. Dois de 78 rotações com fados de Coimbra, dos quais hoje não existem exemplares. Findo o serviço militar, em 1955, Zeca Afonso deu aulas nalguns colégios. Foi um período de grandes dificuldades económicas. Já tinha dois filhos e o casamento começou a ceder. A situação financeira piorou, e em 1958, num acto de desespero, Zeca Afonso enviou os filhos para junto dos avós, em Moçambique. Mas, apesar das dificuldades, não baixou os braços. Tinha o orgulho atrevido de não se deixar abater por qualquer género de dificuldades. O ano de 1956 foi marcado pela candidatura de Humberto Delgado, nas eleições presidenciais. Zeca Afonso acompanhou de perto a campanha eleitoral. Pouco depois, após o balde de água fria que foi a derrota de Delgado, escreveu “Os Vampiros”, um dos temas fundamentais da sua carreira. Quem não achou graça às canções políticas foi a mãe, que sempre pensou que ele não se deveria meter nessas coisas. Mas Zeca não parou de se meter. Em 1962, participou activamente na crise académica. Parte para Faro em busca de uma largueza de horizontes que não conseguia encontrar em Coimbra. Aqui, conheceu Zélia, com quem viria a casar-se. Em Maio de 1964, Zeca Afonso foi cantar à Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense. Aqui surgiu a inspiração para “Grândola, Vila Morena”, canção que, segundo o realizador Fernando Lopes, serviu para transformar Zeca Afonso num “ícone do 25 de Abril”. Nesse mesmo ano, o cantor partiu para Moçambique, onde desenvolveu uma actividade política contra o colonialismo. Resultado: não tardou a ter problemas com a PIDE. Regressou a Lisboa em 1967 e foi colocado como professor em Setúbal. Passado algum tempo adoeceu e foi internado. Quando saiu da clínica, descobriu que tinha sido expulso do ensino oficial. Entretanto, publicou o livro “Cantares de José Afonso” e recebeu o convite de adesão ao PCP. Apesar de ser um artista comprometido politicamente, recusou, invocando a sua condição de classe. Pelo Natal, lançou o álbum “Cantares do Andarilho”. Em 1969 a primavera marcelista trouxe novas perspectivas ao movimento sindical. José Afonso participou nele activamente, assim como nas acções dos estudantes em Coimbra. Foi neste ano que o “desbravador no capítulo musical”, como lhe chama o músico Sérgio Godinho, recebeu o prémio da Casa da Imprensa para o melhor disco, distinção que viu repetida em 1970 e 1971. Lançou aquele que muitos consideram o seu melhor disco, “Cantigas de Maio”. Zeca Afonso continuou a cantar um pouco por todo o lado. Muitas sessões foram proibidas pela PIDE/DGS. Em Abril de 1973 foi preso durante 20 dias em Caxias. Nesse mesmo ano publicou o álbum “Venham Mais Cinco”. Em 29 de Março de 1974, o Coliseu, em Lisboa, encheu-se para ouvir Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira e outros. O espectáculo terminou com “Grândola, Vila Morena”. Nem passado um mês aconteceu o 25 de Abril. “Salgueiro Maia foi herói com a música de Zeca Afonso”, diz o pianista e compositor Bernardo Sassetti. O País explodiu de alegria e ele dedicou-se de alma e coração ao PREC (processo revolucionário em curso). Em 1976 apoiou a candidatura presidencial de Otelo Saraiva de Carvalho e publicou o álbum “Com as Minhas Tamanquinhas”, um disco de combate e de denúncia. Estávamos na ressaca do PREC. Em 1981, após dois anos de silêncio, regressou às origens e editou o álbum “Fados de Coimbra e Outras Canções”. Um ano depois, surgem os primeiros sintomas da doença que viria a ser-lhe fatal. Em Janeiro de 1983 realizou-se um espectáculo no Coliseu de que resultou o duplo álbum “Ao Vivo no Coliseu”. No Natal desse ano sai “Como Se Fora Seu Filho”, o seu testamento político. O Presidente da República, general Ramalho Eanes, tentou atribuir ao cantor um dos graus da Ordem da Liberdade, mas ele recusou-se a preencher o formulário. Em 1985 foi editado o seu último álbum, “Galinhas do Mato”. Devido ao agravamento da doença, Zeca Afonso já não conseguiu cantar todos os temas. Foi substituído por nomes como Luís Represas, Janita Salomé, José Mário Branco e Né Ladeiras. A morte apanhou Zeca Afonso no dia 23 de Fevereiro de 1987. O funeral realizou-se no dia seguinte. Setúbal transformou-se numa cidade de amigos. Eram mais de 30 mil a prestar homenagem a um homem que, segundo Maria do Céu Guerra, “ensinava a pensar, ensinava a sentir”. O “revolucionário lírico”, expressão utilizada pelo historiador José Medeiros Ferreira, passou a fazer parte da matriz de Portugal. Zeca Afonso foi um revolucionário que nunca deixou de perseguir aquilo que sonhou.
1 Comment:
Correcção: o ano das eleições de Humberto Delgado, foi 1958 e não 1956.
Adenda: O albúm "Galinhas do Mato" (1985) teve Júlio Pereira como um dos principais responsáveis pela direcção musical.
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