21 de dezembro de 2006

Lá no Xipangara - João Afonso dos Santos (irmão de José Afonso)

Aos fins de semana, saíamos pela tarde, aparelhados. O Alvaro Simões, que por lá ficou, moçambicano por opção, com a sua câmara fotográfica a tiracolo, eu armado da minha 8 mm. de filmar, e o Zeca. Com todos os comple­mentos da ordem: tripés, jogos de lentes e filtros, fotómetros, gravador, que sei eu. Isto depois de termos espiado o céu, medindo a olho a luminosidade e o "calor" da luz. E, quando o sol a meio do quadrante perdia o gume de aço, começava a projectar sombras e a desentranhar-se em cores, vagueáva­mos pelo "Xipangara", essa outra cidade do caniço que envolve a Beira. Dos três, era Zeca o único que não dependia senão dele mesmo, num indeterminismo vagabundo que desde sempre foi uma sua segunda natureza, acrescentado da crónica aversão que sentia ou acreditava sentir pela máquina em geral, penso que para melhor defender o seu livre arbí­trio. Levava os olhos e o espírito para ver, naquela peculiar e muito pessoal maneira que era a sua de ver as coisas, captan­do-lhes por debaixo da pele, se assim me posso exprimir, os sinais duma verdade oculta. Via e, claro, cumulativamente, ouvia e registava os sons, o ritmo, a linguagem expressiva dos corpos. Posso bem dizer que mergulham nessas convivências os sincretismos musicais afro-europeus que depois aparece­ram dispersos por vários discos editados a partir de 1970, quer dizer, quatro anos mais tarde. Nessas e em outras expe­riências congéneres que já trouxera de Lourenço Marques, donde um despacho atrabiliário e despótico da administração o baniu, por causa desses mesmos convívios, especialmente os que mantinha com a Associação dos Negros de Moçam­bique. Diga-se de passagem, que sempre estranhei que can­ções como "Carta a Miguel Djéjé" ou "Lá no Xipangara", por exemplo, não desfrutem dum favor pelos menos igual ao de outras mais notórias, pela frescura da inovação, o arranjo musical e a construção melódica. Voltando, porém, ao tempo a que estas breves memórias se referem, não me lembra de termos, na altura, notícia desses cantares de raíz moçambicana, cuja maturação se veio a desentranhar em obra provavelmente já depois do Zeca ter regressado a Portugal, em 1967. "Avenida de Angola", que ele trouxe de Lourenço Marques com a bagagem, inspirada é certo por quadros dos subúrbios negros da capital, é ainda uma canção exclusivamente portuguesa, na estrutura melódi­ca e rítmica. Outras eram, pois, as composições que Zeca trazia no seu saco de segrel, criadas em momentos anteriores e editadas depois conjuntamente, com diferentes cronologias. Algumas vezes, ao anoitecer, depois que os dois marimbeiros do pé da porta calavam o seu diálogo demorado e perfeito, a toada onomatopaica e encantatória, era a vez do Zeca cantar para alguns amigos "intra-muros", acompanhando-se tosca­mente à viola, com o auxílio de uma braçadeira que é assim como uma espécie de cábula de tocar. Guardo comigo a gra­vação dum desses momentos que o mesmo Álvaro Simões me enviou por portador, com tantas recomendações como se do velo de ouro se tratasse. Entre outras, lá estão registadas "O Cavaleiro e o Anjo", "Traz Outro Amigo Também" e o "Cantar Alentejano", que acabaram por figurar nos álbuns editados de sessenta e oito a setenta, um por cada ano. Em dada altura, uns tantos devotos saudosistas empreende­ram comemorar, ali nos limites do mangal africano, um feito académico celebrado em Coimbra sob a designação de "Tomada da Bastilha". Ao tempo em que o grupo teatral da cidade se preparava para levar à cena "A Excepção e a Regra", do Bertolt Brecht. Zeca encarregou-se de criar para a peça umas tantas canções destinadas a assegurar o necessário distanciamento brechtia­no da representação dramática. Duas delas vieram a ser incluídas, como se sabe, em discos mais tardios, "Eu Vou Ser Como a Toupeira" e o "Coro Dos Tribunais". E ele mesmo ensaiou este último, tarefa que se verificou não ser menor, nem menos perseverante, do que a do acto de criação pro­priamente dito. Veio o dia em que surgiu, encostada a uma das faces da praça central, com o seu quê de imponente, a réplica em madeira do pórtico fronteiro da Sé Velha de Coimbra, tão semelhante à vista que apenas se poderia lamentar o desam­paro dos vetustos muros a que se encosta o original. A inten­ção era, claro, reproduzir o "clima" convencional duma serenata de Coimbra e Zeca e dois acompanhantes, mais o primeiro do que os segundos, eram dados como certos, até por serem os únicos disponíveis e, portanto, insubstituíveis. Enquanto isto, as provas teatrais enviadas à censura oficial regressaram tão retalhadas que ficava prejudicada qualquer representação. O Dr. Carvalheira - creio que assim se chama­va o censor - era ferocíssimo a empenhar o instrumento cen­sório, a caneta ou a tesoura, conforme as circunstâncias. Mas, ao mesmo tempo, escrupuloso, deu-se ao incómodo de recri­ar, à margem, algumas falas integrais e outras parciais das personagens, depuradas dos aspectos que mais o beliscavam. Logo ali foi mandatado um emissário para fazer saber ao censor que sem Brecht não haveria fados. Torceu-se o homem que, acima de ser censor convicto, era coimbrão ferrenho e empenhado concorrente. Subiu, pois, à cena a "Excepção e a Regra" e atrevo-me a dizer que pela primeira vez em todo o decrépito império.
O programa onde se anunciavam canções inéditas de José Afonso
e algumas fotos da estreia da "Excepção e a Regra"







1 Comment:

Duda Miranda disse...

Olá. Sou do Brasil, onde atuo num grupo de teatro. Estamos montando a peça "A Exceção e a Regra" e pensamos usar as músicas de José Afonso, que são fabulosas e mais adequadas para nós que a música original alemã. No entanto, não consegui achar todas as músicas que ele compôs para a peça. Tenho um disco de vinil com uma coletânea do Zeca com a música "A caminho de Urga" ou "Canta o Coolie". Ouvi pela internet a música "Ali está o rio" e peguei a harmonia. A canção "Coro dos Tribunais" também consegui ouvir na Internet. Será que alguém pode me indicar um caminho para conseguir as músicas da peça? Gostaríamos também de saber como obter autorização para usá-las em nossa montagem. Desde já, muito obrigado. eduardo.miranda@yahoo.com.br