21 de fevereiro de 2007

A sessão no Luso com José Afonso

"A noite estava fresca e escura, sem lua que se visse sobre os telhados, mal iluminada pelos pontos de luz fracos e parcamente disseminados. Na rua não havia qualquer movimento especial, como não havia nas escadas dando acesso ao vestíbulo da sede do simpático clube do Barreiro velho. A dúvida tomava conta do espírito, já de si inquieto, do jovem estudante que tivera aulas em Lisboa até tarde: «E se não fosse fidedigna a informação surgida por via familiar e rodeada do secretismo próprio do tempo?»: Vai haver uma sessão de baladas no Luso com o José Afonso!... transmitira, em jeito de confidência, o primo Caria."
"— Quando? — antecipara-se o jovem aos restantes inter-locutores receosos.
— Nos princípios de Novembro, telefonou o Zé bicas...
— Se fora parente distinto, então a informação era digna crédito, só faltava apurar a data.
A angústia momentânea fazia tolher os passos, ainda no corredor, onde se situavam os balneários. Não se via ninguém, a porta ao fundo estava encostada, a dúvida já dilacerava: «Se calhar não era hoje? Ou então foi cancelada!...»
Empurrada devagarinho, a porta do salão abriu-se, enquanto o coração batia descompassado de dúvida e esperança, para logo pular de alegria e emoção, o salão estava literalmente cheio, talvez 300-400 pessoas.
A sessão já tinha começado, no palco uma viola (Rui Pato) acompanhava uma voz feminina terna e timbrada (Teresa Paula Brito), num blue ou algo do género (Summertime). O calor das palmas revelava o entusiasmo dos presentes, algumas caras conhecidas, poucos jovens da zona (faltava esclarecimento e mobilização entre a malta).
A seguir a poesia dita com muita alma (Odete Santos e a Marcha Almandenim) e uma explicação para a não participação do Adriano Correia de Oliveira, também presente: «Estava na tropa e não lhe era permitido cantar.» Assobio, alguém ensaia um grito isolado: «Abaixo a guerra!», sem seguidores. No fim acabaria por cantar em coro, mas naquele momento segurava os papéis com as letras que o memorável Zeca Afonso começava a cantar.
Por cada intervenção a sala explodia em aplausos e gritos. Para além dos méritos do cantor, algo mais ali se celebrava, era Portugal amordaçado abrindo o grito de protesto contra a tirania, pela voz do poeta que melhor fazia a sua denúncia. A poesia generosa e revolucionária despertava a vontade de participar no combate à repressão que prendia e torturava a resistência à ditadura. Como de resto neste caso também iria acontecer.
Na plateia um novo grito se juntava, cada vez com mais insistência, conforme o poeta-cantor avançava na noite. Tanto podia ser interpretado como uma acusação, como um pedido:
— Vampiros! Vampiros!
Alguém da organização (Álvaro Monteiro) explicava no palco ser aquela uma sessão comemorativa de um aniversário (Cine-Clube do Barreiro), devendo-se evitar complicações. A resposta da plateia foi eloquente, gritando com mais força ainda:
— Vampiros! Vampiros! Vampiros!
Um assistente perto da porta, com ar de quem tinha vindo de longe, comentava judiciosamente:
— A canção está proibida! É um risco desnecessário cantá -la Não insistam!
Ouvindo o reparo contrariador, mais vozes se juntaram ao imenso coro e o poeta cantou, com centenas de gargantas embargadas de emoção:
Se alguém se engana com seu ar sisudo, E lhes franqueia as portas à chegada, Eles comem tudo, eles comem tudo! Eles comem tudo e não deixam nada!
Se há acontecimentos que marcam uma geração, a sessão de Canto e Poesia, promovida no dia 11 de Novembro de 1967, pela direcção do Cine -Clube do Barreiro, em colaboração com o Luso Futebol Clube, ficará para sempre gravada no coração dos barreirenses. Dos que estiveram presentes, como daqueles que depois ouviram contar, se é que é possível transmitir a emoção até às lágrimas duma noite inesquecível."

Armando Sousa Teixeira
Texto: do livro "A Industria e a Luta em Desenvolvimento"
Barreiro, Uma Historia de Trabalho Resistência e Luta

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