23 de fevereiro de 2007

Zeca disperso pelo país

JOSÉ AFONSO GRAVOU DISCOS DURANTE 32 ANOS ENTRE 1953 E 1985. A SUA VASTA OBRA É UM DOS MAIS FUNDAMENTAIS TESOUROS DA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR PORTUGUESA. ENTRE OS SEUS DISCOS OBRIGATÓRIOS FIGURA, EM MAIORITÁRIA, A PRODUÇÃO EXECUTADA NA DÉCADA DE 1970.


Os consensos nunca foram o ponto forte de Zeca Afonso, mas, 20 anos cumpridos sobre a sua morte, o reconhecimento sobre a importância da obra que legou aproxima-se precisamente daquele grau pleno de aceitação que o autor de "Filhos da madrugada" sempre considerou pernicioso, devido ao risco de inebriar os autores e afastá-los do que realmente importa.

Hoje, artistas representativos de várias gerações, mas também um público numeroso que ainda se revê nos temas que ajudaram a acentuar as fragilidades de um regime putrefacto, continua a ver na obra de Zeca um artista comprometido com a realidade de um tempo que ainda é o nosso.

"As suas canções permanecem frescas e esse é um mérito que ninguém lhe pode retirar", defende Carlos Tê, o compositor e letrista que enfatiza o interesse ainda suscitado pelos seus discos com a "contínua redescoberta" das novas gerações. "Ver o seu trabalho interpretado por outros é a melhor homenagem que se lhe pode fazer e aquilo a que ele, certamente, mais gostaria de assistir", adianta.

Sam the Kid é um dos novos autores do meio musical português para quem a obra do cantautor não soa estranha, embora reconheça que "há metáforas escondidas em que eu não percebo tudo". "É uma música excelente", afirmou o 'rapper', que já usou excertos de 'Grândola, vila morena' num dos seus temas", à agência Lusa.

O interesse pelo material que produziu durante mais de três décadas resiste à óbvia datação histórica de parte do seu trabalho. E se é certo que mais nenhuma releitura da sua música atingiu a visibilidade de "Os filhos da madrugada" - álbum de homenagem em 1994, que reuniu contributos de uma dezena e meia de artistas -, todos os anos surgem novos sinais de fascínio. Um dos mais recentes exemplos é o espectáculo que Cristina Branco apresenta no Jardim de Inverno do Teatro São Luiz, em Lisboa, conferindo novas texturas às suas canções mais emblemáticas.

Se, como compositor, o seu talento é amplamente reconhecido, também como intérprete Zeca Afonso reúne incondicionais. É o caso de produtor e músico Mário Barreiros, fã de "uma voz que primava pela simplicidade".

Unidos pela devoção, os apreciadores de Zeca convergem também no reconhecimento da escassa divulgação que a sua música merece hoje nas rádios e televisões. Uma pecha que só não é mais grave porque, como sublinha Janita Salomé, "todas as pessoas sabem cantarolar canções do Zeca, tal como acontece com alguns fados".

"Espírito de andarilho"

O quase unanimismo que rodeia a obra do cantor e compositor nascido em Aveiro - cidade que praticamente ignora a efeméride hoje assinalada - encontra um indicador exemplar no número de localidades que aderiram à data.

Do vasto programa previsto para hoje, o mais ambicioso pertence ao Centro Cultural de Vila Flor, em Guimarães. Hoje e amanhã, há workshops, debates, encenações musicais e sobretudo aquela que promete ser a mais ampla mostra bibliográfica, com discos, livros, brochuras, vídeos, revistas, catálogos e fotografias.

Director da Associação José Afonso (AJA), Paulo Esperança não concorda que a descentralização de eventos possa ofuscar a visibilidade do ambicioso plano de iniciativas a desenvolver ao longo do ano "Pelo contrário. Esta dispersão vai plenamente ao encontro do espírito de andarilho que caracterizou o Zeca, sempre interessado em levar a sua música a novos locais".

A associação, sediada em Setúbal, pretende fazer da efeméride o pretexto ideal para levar as músicas do cantor a um público numeroso, "não só as pessoas que desde sempre conviveram com elas mas também as novas gerações".

Depois de Felgueiras, Guimarães e Porto, a AJA quer levar a outras localidades do país, até final do ano, iniciativas capazes de contribuir para que mais pessoas conheçam a sua obra.

"Não estamos dependentes de subsídios. Tentamos potenciar as actividades que desenvolvemos, apresentando-as às autarquias eventualmente interessadas", diz Paulo Esperança.


"Venham mais cinco" (1973)

Gravado em Paris, inclui algumas das canções que escreveu durante a sua prisão em Caxias.



"Coro dos Tribunais" (1974)

Disco composto e gravado poucos meses após o 25 de Abril. Conta com "O que faz falta" e outras pérolas .



"Ao vivo no Coliseu"



(1983)

Registo em formato duplo que compila o histórico concerto. Ao longo de 17 canções faz-se uma retrospectiva da sua obra. Termina com uma arrepiante "Grândola" cantada pelo público.



"Cantigas do Maio" (1971)

É frequentemente referido como "o melhor disco de sempre da música portuguesa". Gravado no Outono de 1971 em Herouville, França, conta com arranjos e direcção musical de José Mário Branco. É nesta obra sublime que surgem as canções eternas como "Senhor Arcanjo", "Cantar Alentejano" (dedicado a Catarina Eufémia) ou "Coro da Primavera".

Mais importante ainda "Cantigas do Maio" é o disco de "Grândola Vila Morena".


Sérgio Almeida Jornal de Notícias

Leave your comment