20 de maio de 2007

Aquilo é música pura

«O Canarinho é um caso curioso»- comenta José Mário Branco quando lhe pedi para contar a sua participação neste tema. «para mim», prosseguiu, «é paradigmático da noção que eu tenho de que as obras de arte são acontecimentos que podem parecer fortuitos. Nada naquela cantiga indica que possa ter alguma importância. alguma carga extra-musical, de men¬sagem, e, no entanto, é muitas vezes esse o segredo do Zeca e de qualquer grande músico: tornar-se um estímulo para acontecimentos. Aquilo é música pura. Havia dados seguros e conversados com o Zeca que eram a pulsação rítmica de base dada pelas percussões e o coro das mulheres que lhe propus, tendo em conta uma imagem que me ficou da minha primeira ida ao Alentejo aos 17 anos. A imagem era: eu vou por um caminho, vejo a planície pelo lado das colinas e ouço algures vindo detrás dessas colinas mulheres que andam a trabalhar cantando. Isto era a base. No entanto, faltava qualquer coisa que integrasse a componente africana, o carácter exótico não europeu contido na melodia. Estive até à última sem conseguir resolver este problema. Passei noites sem dormir. e no último dia da gravação, quando me levantei de manhã, meti num saco plástico todas as flautas de madeira que encontrei e fui para o estúdio sozinho. Fiz as flautas em sistema de multipista, acumulando-as. Depois foi praticamente acrescentar a outra voz que aparece - a do Janita - que é o contraponto individual à voz das mulheres, como se o rancho das mondadeiras cruzasse o pastor solitário.»

in "Livra-te do medo - estórias e andanças do Zeca Afonso" de José A. Salvador


Canarinho
(José Afonso)

O canarinho cai
No cantarinho ai
Do canarinho
O cantarinho cai
Na canarinho ai
Do canarinho

O alarido sai
Do arruído ai
Do alarido
O arruído sai
Do alarido ai
Do arruído

O vagabundo vai
A cada mundo ai
Do vagabundo
A cada mundo vai
O vagabundo ai
Do cada mundo

O cavalinho vai
De vagarinho ai
Do cavalinho
O vagarinho vai
De cavalinho ai
De vagarinho

Leave your comment