Foi durante o concerto Zeca Jazz, na Casa da Música que apaziguei o meu coração com a Maria João. Penso que o piano do Mário Laginha muito contribuiu para o lento tecer dessa empatia que os presentes foram sentido.
O apaziguamento (estético e musical) com a Maria João empurrou-me para aqueles momentos em que sentimos ser necessário pensar. Pensar de forma abrangente e completa, mais uma necessidade do que um capricho. Pensar apenas e não recear os contornos e as fronteiras desses pensamentos.
E o meu coração, nesses pensamentos, divorciou-se do espectáculo e concentrou-se no que sobrou daquela reunião de pessoas, do seu mote mas principalmente das que o não puderam fazer.
Os pensamentos rapidamente fluíram para o efémero do concerto, para o envelhecimento dos espectadores e para o repetir do gesto, de uma crença talvez, que o Zeca ainda exista entre nós.
Por fim, fluíram para um vazio... o de todos os que não pensaram no Zeca.
No meu bairro, que existe próximo de outro bairro designado de habitação social, que deve significar que são parte da sociedade (o que me deixa mais tranquilo e menos sozinho), a média de idades é elevada. Brinco muitas vezes quando digo que sempre que adoeço ou que tenho um ar esbaforido, que a minha vizinha, com a sua forma mais sincera de o ser, me oferece a sua única sopa e o tabuleiro com o almoço, ou a sageza nas palavras: “é para não ter de cozinhar...”.
O mesmo se passará no outro bairro (espero), mas esse é um bairro esquecido. Minto, são as pessoas que se podem esquecer – os bairros pintam-se e renovam-se. São as pessoas que nele habitam, os meus heróis. É na sua luta diária, nos seus encontros e na forma como ainda resistem a uma democracia feliz, arrastando consigo o saber único de viver com pouco e de ainda sonhar (nem que seja ao domingo e com uma bola) e de viver uma utopia mesmo sem saber o que a utopia no dicionário significa.
Esta a dicotomia não se transforma em dialéctica porque os meus heróis não podem ir ao concerto e o concerto também os ignora. Leva-me o pensamento uma vez mais a questionar o meu papel, por ténue que seja, nesta associação. Realmente não pretendo continuar a participar em concertos de 15€ para um grupo restrito e previsível.
O concerto em que quero participar talvez não seja um concerto. Ou por outras palavras, deverá ser uma expressão de arte, e por isso poderá ser um concerto. Mas não poderá ser a mesa de “debate dos mesmos”, com os temas do costume e com o nosso abrandamento endógeno de quem acha que trinta anos envelhecem uma revolução.
Será para isto que a AJA existe? Protagonizando um caminho da memória que é também o caminho do esquecimento? Como ganhar novos elementos e simultaneamente promover difusão cultural da música do Zeca?
Julgo que não será a 15€ na Casa da Música. Essa é a minha certeza e a certeza do bairro vizinho do meu que mesmo que tivessem os 15€ (que são do futebol), seriam duplamente excluídos, ora por lhes faltar o valor do outro jogo ora por realmente os excluirmos mesmo que estivessem ao nosso lado.
Essa é a indignação, o paradoxo que corrompe a memória do Zeca. A associação não se indigna, não se revolta, não se inconforma e não orienta a sua capacidade para essa indignação.
A associação, neste contexto, não perpetua Zeca porque não é capaz de se indignar com os 15€ que o bairro vizinho não pode pagar. Esta associação é um luxo dos tempos modernos e os seus membros adormeceram no conforto das cadeiras da Casa da Música, da mesma forma que o olhar do outro bairro adormece na ternura de uma bola.
Esta associação deveria despir-se de membros e procurar-se nos heróis do Vale do Ave (e de outros lugares), deveria juntar a indignação do Zeca, das suas músicas, à indignação de se ver obrigado a pensar que a utopia deva ser algo parecido com um emprego.
É aí que estão os membros da AJA. Podem é não ter 15€ nem se sentirem bem na Casa da Música como eu, que os tenho, também não me senti quando pensei no papel que representei.
Abílio Magalhães
O apaziguamento (estético e musical) com a Maria João empurrou-me para aqueles momentos em que sentimos ser necessário pensar. Pensar de forma abrangente e completa, mais uma necessidade do que um capricho. Pensar apenas e não recear os contornos e as fronteiras desses pensamentos.
E o meu coração, nesses pensamentos, divorciou-se do espectáculo e concentrou-se no que sobrou daquela reunião de pessoas, do seu mote mas principalmente das que o não puderam fazer.
Os pensamentos rapidamente fluíram para o efémero do concerto, para o envelhecimento dos espectadores e para o repetir do gesto, de uma crença talvez, que o Zeca ainda exista entre nós.
Por fim, fluíram para um vazio... o de todos os que não pensaram no Zeca.
No meu bairro, que existe próximo de outro bairro designado de habitação social, que deve significar que são parte da sociedade (o que me deixa mais tranquilo e menos sozinho), a média de idades é elevada. Brinco muitas vezes quando digo que sempre que adoeço ou que tenho um ar esbaforido, que a minha vizinha, com a sua forma mais sincera de o ser, me oferece a sua única sopa e o tabuleiro com o almoço, ou a sageza nas palavras: “é para não ter de cozinhar...”.
O mesmo se passará no outro bairro (espero), mas esse é um bairro esquecido. Minto, são as pessoas que se podem esquecer – os bairros pintam-se e renovam-se. São as pessoas que nele habitam, os meus heróis. É na sua luta diária, nos seus encontros e na forma como ainda resistem a uma democracia feliz, arrastando consigo o saber único de viver com pouco e de ainda sonhar (nem que seja ao domingo e com uma bola) e de viver uma utopia mesmo sem saber o que a utopia no dicionário significa.
Esta a dicotomia não se transforma em dialéctica porque os meus heróis não podem ir ao concerto e o concerto também os ignora. Leva-me o pensamento uma vez mais a questionar o meu papel, por ténue que seja, nesta associação. Realmente não pretendo continuar a participar em concertos de 15€ para um grupo restrito e previsível.
O concerto em que quero participar talvez não seja um concerto. Ou por outras palavras, deverá ser uma expressão de arte, e por isso poderá ser um concerto. Mas não poderá ser a mesa de “debate dos mesmos”, com os temas do costume e com o nosso abrandamento endógeno de quem acha que trinta anos envelhecem uma revolução.
Será para isto que a AJA existe? Protagonizando um caminho da memória que é também o caminho do esquecimento? Como ganhar novos elementos e simultaneamente promover difusão cultural da música do Zeca?
Julgo que não será a 15€ na Casa da Música. Essa é a minha certeza e a certeza do bairro vizinho do meu que mesmo que tivessem os 15€ (que são do futebol), seriam duplamente excluídos, ora por lhes faltar o valor do outro jogo ora por realmente os excluirmos mesmo que estivessem ao nosso lado.
Essa é a indignação, o paradoxo que corrompe a memória do Zeca. A associação não se indigna, não se revolta, não se inconforma e não orienta a sua capacidade para essa indignação.
A associação, neste contexto, não perpetua Zeca porque não é capaz de se indignar com os 15€ que o bairro vizinho não pode pagar. Esta associação é um luxo dos tempos modernos e os seus membros adormeceram no conforto das cadeiras da Casa da Música, da mesma forma que o olhar do outro bairro adormece na ternura de uma bola.
Esta associação deveria despir-se de membros e procurar-se nos heróis do Vale do Ave (e de outros lugares), deveria juntar a indignação do Zeca, das suas músicas, à indignação de se ver obrigado a pensar que a utopia deva ser algo parecido com um emprego.
É aí que estão os membros da AJA. Podem é não ter 15€ nem se sentirem bem na Casa da Música como eu, que os tenho, também não me senti quando pensei no papel que representei.
Abílio Magalhães
1 Comment:
Caro Abílio,
gostei muito do seu texto porque é um texto daqueles que já não se viam há uns tempos largos pelas bandas da AJA.
São textos destes que nos fazem falta.
Quanto ao seu conteúdo, tenho a dizer-lhe que durante este ano houve muitas "casas da música" para o Zeca e a "Casa da Música do Porto" foi uma entre muitas. Esta custou 15 euros, mas outras houve em que os heróis do Vale do Ave, os heróis da Longra, os heróis de Évora, os heróis de Gueifães, os heróis de Odivelas, os heróis de Ourém, etc, estiveram presentes e para além disso, foram eles que organizaram a sua "casa da música".
O debate dos mesmos com o tema do costume é, também quanto a mim, um facto. No entanto, se estivermos atentos às notícias do Blog da AJA reparamos que houve um par de conferências sob o título de "José Afonso nas escolas" assim como foram levadas a cabo 3 oficinas de escrita criativa em Cascais, Estarreja e Felgueiras. Ao mesmo tempo houve outras conferências, em que nomes fulcrais como Elfriede Engelmeyer trouxeram textos altamente ricos em pistas para a abordagem da obra do Zeca.
Quanto aos concertos de homenagem ao Zeca, também é verdade que se escolhem sempre os mesmos intervenientes (com todo o respeito pelo seu trabalho) aos quais respondem os mesmos públicos mantendo-se assim o círculo vicioso. O concerto da Casa da Música foi uma clara tentativa de quebrar esse círculo. Celebrar Zeca com Jazz não foi mais do mesmo de certeza.
A certeira pergunta que o Abílio faz "Como ganhar novos elementos e simultaneamente promover a difusão cultural do Zeca?" é a pergunta que todos os associados da AJA devem fazer a si próprios quando preenchem a ficha de inscrição na AJA. É a pergunta com que eu me debato desde que entrei para a AJA. À minha maneira tentei responder com trabalhos palpáveis.
Eu, por mim, acho que é com eventos como o da Casa da Música, a 15, 20 ou 30 Euros e também com tudo aquilo que nós formos capazes de fazer nos nossos bairros, nas nossas vilas ou cidades e nas nossas escolas, que faremos a promoção cultural do Zeca. Depende de nós enquanto associados ou não associados. o Zeca é de todos.
Resumindo e concluindo, a AJA está a precisar de novos elementos como nunca. Não elementos que somente preencham um ficha de inscrição, ou que se envolvam em teorias várias sobre a projecção da obra e exemplo do Zeca, mas elementos com projectos práticos e capazes de projectar o Zeca no futuro, não com mais do mesmo mas com originalidade (se possível).
Um abraço para si.
Miguel Gouveia
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