É vulgar, quando alguém com notoriedade desaparece, como cogumelos nascerem amigos e companheiros, que sempre têm uma história para contar, como se fora sua mas normalmente com outros acontecidas. Do Zeca e com o Zeca, não faltam narrativas. Nem sempre edificantes. Gente que pode ter sido sua contemporânea em Coimbra mas que não foi de sua privança, barafusta com uma ou outra historieta que, algumas vezes, de forma acintosa, tem por objectivo pôr em causa aspectos da sua personalidade, quando não da sua vida privada, pelo incómodo da grandeza e refinamento ideológico.
Tem-me acontecido virem contar-me pequenos episódios de vivência coimbrã passados comigo, que eventualmente relatei, que dada a volta costumeira e por desfibrilhação entrópica, regressa a mim na euforia de alguém que conta como se passados consigo.
O Zeca paga esse preço, exactamente pelo que sempre foi mas sobretudo pelo mito que se tornou, pelo que vão transitando em julgado algumas calúnias e desmandos em que se tornou fértil ou sempre o foi a Coimbra provinciana e invejosa, mais apta a notabilizar boémios que os que cometiam o pecado capital de pensar, pensar livremente, agir no espaço subjectivo da liberdade consentida, no exercício de um estilo de vida que é essência da criação poética.
Assim o Zeca, livre pensador que adornava uma rara alma de artista e uma assumida consciência cívica, interventora e comprometida ideologicamente, que veio a traduzir-se no plano da criação artística numa obra que o coloca entre os principais músicos do sec. XX, naquilo a que depois se chamou cantautores.
O Zeca mais próximo do que pretexta esta sessão de homenagem é o intérprete de música de matriz coimbrã, maxime aquilo a que se convencionou com maior ou menor rigor chamar de fado de Coimbra.
O Zeca Afonso andava pelos bancos do liceu D. João III em Coimbra e já participava em serenatas e também em espectáculos populares, pela mão de Flávio Rodrigues e Fernando Rodrigues, os irmãos barbeiros a quem a música coimbrã tanto deve, mas que vão andando esquecidos ou aqui e ali relembrados, porque uma forma bacoca de elitismo sempre ali morou, instado no código genético universitário.
A um tempo, jogava futebol nos juniores da Académica, imagine-se, a extremo direito, e garanto-vos que tinha um jeitão.
Entrado na universidade, para frequentar Histórico-Filosóficas, José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos integra o Orfeon e torna-se solista de segundos tenores. Tem uma voz suave, pessoal e em quitação de pieguismos, como poucos faz ouvir palavras inteiras, divide com rigor a sintaxe musical, articula com sentimentalidade premunida o a dizer, desvenda semiogonias que tantas vezes o verbo esconde.
Mas o Zeca não era muito de estar arrumadinho em naipes, de se perfilar em corais. Foi estando como pretexto para outras digressões, deu uma mãozinha quando foi criado o coral das Letras, primeiro coro misto da nossa academia.
Aconteceu casar muito cedo e nascerem-lhe dois filhos. Foi do amor uma decisão contrariada que lhe acumulou dificuldades. Passou a morar com a Amalita, como lhe chamava ternamente, numa cave da Rua de S. Salvador, em frente da casa da mãe do Jorge Godinho, senhora que foi formando os filhos a dar cama, mesa e roupa lavada a estudantes.
Nessa casa, num quarto das traseiras, voltado para a rua do Loureiro, arrumava os códigos e rubricava a viola o Levy Batista, e por lá andava eu, entre o tertuliar conspirativo e uns garganteios, consolidados depois na Tuna e segredados nas mesas do Café Montanha, em partilha fraternal.
Connosco também o Zeca, inevitavelmente, a rilhar maus momentos, com subtis apoios de alguns de nós e a solidariedade de poucos.
Tempos difíceis, porque chamado para a tropa vai a Mafra para o curso de oficiais milicianos, regressando a Coimbra com a galonite de alferes atravessada nos ombros.
Era insuperável nas caricaturas que fazia de toda a militança, acidulado para a hirerarquia das continências, incontinente de fina ironia quando de pistola à cinta saía para a ronda de polícia militar, prática corrente da sociedade castrense.
A guerra colonial suspirante a menos de uma década, já respirava entre aqueles de nós que éramos menos dos copos e mais das leituras e do compromisso cívico, e até se dera o caso de Agostinho Neto ser hóspede da tal casa, como de resto o era também Carlos Mac Mahon.
Íamos falando em surdina a pensar se as paredes tinham ouvidos, entre uns fados tradicionais e umas cançonetas napolitanas, que a viola do Levy magistralmente sublinhava e a guitarra do guitarrinhas, o Jorge Godinho, amparava como podia, até ascenderem ambos ao estrelato daquilo a que se chamou Quinteto de Coimbra, ou mais afiambrado, Coimbra quintet, coisa que nunca existiu.
Eram tempos da fraternidade a pairar no para sempre do tempo, que se instaurou para que mais bem se compreenda o Zeca que volta a Coimbra na crise académica de 62 a partilhar com os jovens de então a dimensão das revoltas, Abril antes de Abril tão mal recebido por tantos dos que agora blasonam de terem sido seus companheiros.
Por isso me importa aqui, sem um módico de esquecimento do excelente intérprete da música de Coimbra, a que de resto regressou com o disco de homenagem a Edmundo Bettencourt, colega que fora de seu pai, me importa, dizia, celebrar o cantor de intervenção política projectado sobremaneira nas memórias porque uma sua canção foi senha da madrugada de Abril da liberdade sonhada, cantor de protesto que vale por uma obra poética e musical que está muito para além das circunstanciais fronteiras, que seria certamente celebrado em todo o mundo se em língua mais universal tivesse cantado.
Músico inspiradíssimo e poeta de rara sensibilidade, mas acima de tudo muito consciente dos mecanismos da criação, estranhamente ou talvez não a sua obra poética não consta das recolhas e referências da poesia portuguesa contemporânea, não se elenca nos cânones historiográficos da nossa literatura e, não obstante, acentua-se, marca como poucos a contemporaneidade.
Não sei de manual escolar onde apareça um poema seu, e como seria importante, ainda que não se atrevessem à dimensão mais notadamente política, como seria importante dar a ler a sua obra eminentemente lírica, na qual a limpidez de um olhar inteligente sobre a vida, sobre as pessoas e sobre os sentimentos ressoa como das mais conseguidas da segunda metade do século vinte.
Mas a literatura ausentou-se do ensino da Língua, pensar realmente dá trabalho, instalou-se a ideia peregrina de que a escola é espaço lúdico. Sabemos o preço, na charneca intelectual em que o país estiola.
Celebrem-se por oposição os estudos de Elfriede Engelmayer e os esforços de Viale Moutinho, persistentes em trabalhos adultos sobre o nosso poeta e compositor, registos se não exaustivos garantem porém uma visão clarividente do Homem e da Obra, grafados com maiúsculas, porque de coisa grande se trata.
Entre muitas dezenas, proponho este poema escrito em Coimbra, em 1955:
A minha voz não ouve a voz do vento
A minha mão não sente a mão que sinto
Os meus olhos não vêem o que eu vejo
Desisto e invejo o que me dá alento
Seduzo-me a tentar mas não me tento
Pretendo-me sem dar-me o pretendido
Se busco perco-me onde não há p’rigo
Nutro de olvido com que me sustento
Se por aqui não venho ali não sigo
O que m traz por cá foi-me esquecendo
Desfaço o feito e faço o presumido
Nada consigo e nisto vou cedendo
Nisto prossigo e nisto me entendendo
(A voz de bronze que me traz consigo)
Ó minha amada vê como estou vendo
Ceia também comigo ó meu amigo
Atendamos uma outra maneira de exteriorizar o sentido, ante a morte de um ente querido, escrito nos anos cinquenta, quando dele se sabe que cantava em serenatas e brincava com as palavras, nas conversas à mesa do café. É um extraordinário poema sobre a morte, a morte petrificada em incomunicação:
Pela quietude das tuas mãos unidas.
Desce o eterno e a paz.
Nada perturba o silêncio posto nas tuas pálpebras.
É a morte o templo, a plenitude infinda.
Abatem-se os contornos, teu vulto esfuma a rigidez das coisas,
a exactidão concreta.
Nenhuma dor descerrará nossas bocas profanas
para pronunciar o césamo que te abrirá os céus,
pobre silhueta humana, já pertença neutral,
informe barro
Inalterável mistério, subsistência.
Entre o vivo e o morto o abismo sa incomunicação,
A distância absurda da intemporalidade.
O entrar na origem, menos existência
Que companhia apenas de todas as coisas que ali estão
Em frente além.
Só contemplar-te para penetrar teu mistério
E apressar a corrida para a petrificação.
Depois sim: vossa presença pura
Entre Impronunciáveis e Inconcebíveis-Nada..
Que coisa o amor! Pobre balbucie
Gérmen do primeiro estrebuchar da primeira forma.
Embrião latejando o que quer persistir e continuar-se-Assim
E se ainda não perceberam até ao fim estes grande poeta e homem de acção cívica, fiquemos com esta carta escrita à filha Joana, na prisão de Caxias, em Maio de 1973:
Tem-me acontecido virem contar-me pequenos episódios de vivência coimbrã passados comigo, que eventualmente relatei, que dada a volta costumeira e por desfibrilhação entrópica, regressa a mim na euforia de alguém que conta como se passados consigo.
O Zeca paga esse preço, exactamente pelo que sempre foi mas sobretudo pelo mito que se tornou, pelo que vão transitando em julgado algumas calúnias e desmandos em que se tornou fértil ou sempre o foi a Coimbra provinciana e invejosa, mais apta a notabilizar boémios que os que cometiam o pecado capital de pensar, pensar livremente, agir no espaço subjectivo da liberdade consentida, no exercício de um estilo de vida que é essência da criação poética.
Assim o Zeca, livre pensador que adornava uma rara alma de artista e uma assumida consciência cívica, interventora e comprometida ideologicamente, que veio a traduzir-se no plano da criação artística numa obra que o coloca entre os principais músicos do sec. XX, naquilo a que depois se chamou cantautores.
O Zeca mais próximo do que pretexta esta sessão de homenagem é o intérprete de música de matriz coimbrã, maxime aquilo a que se convencionou com maior ou menor rigor chamar de fado de Coimbra.
O Zeca Afonso andava pelos bancos do liceu D. João III em Coimbra e já participava em serenatas e também em espectáculos populares, pela mão de Flávio Rodrigues e Fernando Rodrigues, os irmãos barbeiros a quem a música coimbrã tanto deve, mas que vão andando esquecidos ou aqui e ali relembrados, porque uma forma bacoca de elitismo sempre ali morou, instado no código genético universitário.
A um tempo, jogava futebol nos juniores da Académica, imagine-se, a extremo direito, e garanto-vos que tinha um jeitão.
Entrado na universidade, para frequentar Histórico-Filosóficas, José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos integra o Orfeon e torna-se solista de segundos tenores. Tem uma voz suave, pessoal e em quitação de pieguismos, como poucos faz ouvir palavras inteiras, divide com rigor a sintaxe musical, articula com sentimentalidade premunida o a dizer, desvenda semiogonias que tantas vezes o verbo esconde.
Mas o Zeca não era muito de estar arrumadinho em naipes, de se perfilar em corais. Foi estando como pretexto para outras digressões, deu uma mãozinha quando foi criado o coral das Letras, primeiro coro misto da nossa academia.
Aconteceu casar muito cedo e nascerem-lhe dois filhos. Foi do amor uma decisão contrariada que lhe acumulou dificuldades. Passou a morar com a Amalita, como lhe chamava ternamente, numa cave da Rua de S. Salvador, em frente da casa da mãe do Jorge Godinho, senhora que foi formando os filhos a dar cama, mesa e roupa lavada a estudantes.
Nessa casa, num quarto das traseiras, voltado para a rua do Loureiro, arrumava os códigos e rubricava a viola o Levy Batista, e por lá andava eu, entre o tertuliar conspirativo e uns garganteios, consolidados depois na Tuna e segredados nas mesas do Café Montanha, em partilha fraternal.
Connosco também o Zeca, inevitavelmente, a rilhar maus momentos, com subtis apoios de alguns de nós e a solidariedade de poucos.
Tempos difíceis, porque chamado para a tropa vai a Mafra para o curso de oficiais milicianos, regressando a Coimbra com a galonite de alferes atravessada nos ombros.
Era insuperável nas caricaturas que fazia de toda a militança, acidulado para a hirerarquia das continências, incontinente de fina ironia quando de pistola à cinta saía para a ronda de polícia militar, prática corrente da sociedade castrense.
A guerra colonial suspirante a menos de uma década, já respirava entre aqueles de nós que éramos menos dos copos e mais das leituras e do compromisso cívico, e até se dera o caso de Agostinho Neto ser hóspede da tal casa, como de resto o era também Carlos Mac Mahon.
Íamos falando em surdina a pensar se as paredes tinham ouvidos, entre uns fados tradicionais e umas cançonetas napolitanas, que a viola do Levy magistralmente sublinhava e a guitarra do guitarrinhas, o Jorge Godinho, amparava como podia, até ascenderem ambos ao estrelato daquilo a que se chamou Quinteto de Coimbra, ou mais afiambrado, Coimbra quintet, coisa que nunca existiu.
Eram tempos da fraternidade a pairar no para sempre do tempo, que se instaurou para que mais bem se compreenda o Zeca que volta a Coimbra na crise académica de 62 a partilhar com os jovens de então a dimensão das revoltas, Abril antes de Abril tão mal recebido por tantos dos que agora blasonam de terem sido seus companheiros.
Por isso me importa aqui, sem um módico de esquecimento do excelente intérprete da música de Coimbra, a que de resto regressou com o disco de homenagem a Edmundo Bettencourt, colega que fora de seu pai, me importa, dizia, celebrar o cantor de intervenção política projectado sobremaneira nas memórias porque uma sua canção foi senha da madrugada de Abril da liberdade sonhada, cantor de protesto que vale por uma obra poética e musical que está muito para além das circunstanciais fronteiras, que seria certamente celebrado em todo o mundo se em língua mais universal tivesse cantado.
Músico inspiradíssimo e poeta de rara sensibilidade, mas acima de tudo muito consciente dos mecanismos da criação, estranhamente ou talvez não a sua obra poética não consta das recolhas e referências da poesia portuguesa contemporânea, não se elenca nos cânones historiográficos da nossa literatura e, não obstante, acentua-se, marca como poucos a contemporaneidade.
Não sei de manual escolar onde apareça um poema seu, e como seria importante, ainda que não se atrevessem à dimensão mais notadamente política, como seria importante dar a ler a sua obra eminentemente lírica, na qual a limpidez de um olhar inteligente sobre a vida, sobre as pessoas e sobre os sentimentos ressoa como das mais conseguidas da segunda metade do século vinte.
Mas a literatura ausentou-se do ensino da Língua, pensar realmente dá trabalho, instalou-se a ideia peregrina de que a escola é espaço lúdico. Sabemos o preço, na charneca intelectual em que o país estiola.
Celebrem-se por oposição os estudos de Elfriede Engelmayer e os esforços de Viale Moutinho, persistentes em trabalhos adultos sobre o nosso poeta e compositor, registos se não exaustivos garantem porém uma visão clarividente do Homem e da Obra, grafados com maiúsculas, porque de coisa grande se trata.
Entre muitas dezenas, proponho este poema escrito em Coimbra, em 1955:
A minha voz não ouve a voz do vento
A minha mão não sente a mão que sinto
Os meus olhos não vêem o que eu vejo
Desisto e invejo o que me dá alento
Seduzo-me a tentar mas não me tento
Pretendo-me sem dar-me o pretendido
Se busco perco-me onde não há p’rigo
Nutro de olvido com que me sustento
Se por aqui não venho ali não sigo
O que m traz por cá foi-me esquecendo
Desfaço o feito e faço o presumido
Nada consigo e nisto vou cedendo
Nisto prossigo e nisto me entendendo
(A voz de bronze que me traz consigo)
Ó minha amada vê como estou vendo
Ceia também comigo ó meu amigo
Atendamos uma outra maneira de exteriorizar o sentido, ante a morte de um ente querido, escrito nos anos cinquenta, quando dele se sabe que cantava em serenatas e brincava com as palavras, nas conversas à mesa do café. É um extraordinário poema sobre a morte, a morte petrificada em incomunicação:
Pela quietude das tuas mãos unidas.
Desce o eterno e a paz.
Nada perturba o silêncio posto nas tuas pálpebras.
É a morte o templo, a plenitude infinda.
Abatem-se os contornos, teu vulto esfuma a rigidez das coisas,
a exactidão concreta.
Nenhuma dor descerrará nossas bocas profanas
para pronunciar o césamo que te abrirá os céus,
pobre silhueta humana, já pertença neutral,
informe barro
Inalterável mistério, subsistência.
Entre o vivo e o morto o abismo sa incomunicação,
A distância absurda da intemporalidade.
O entrar na origem, menos existência
Que companhia apenas de todas as coisas que ali estão
Em frente além.
Só contemplar-te para penetrar teu mistério
E apressar a corrida para a petrificação.
Depois sim: vossa presença pura
Entre Impronunciáveis e Inconcebíveis-Nada..
Que coisa o amor! Pobre balbucie
Gérmen do primeiro estrebuchar da primeira forma.
Embrião latejando o que quer persistir e continuar-se-Assim
E se ainda não perceberam até ao fim estes grande poeta e homem de acção cívica, fiquemos com esta carta escrita à filha Joana, na prisão de Caxias, em Maio de 1973:
Prosema III
Querida Joana:
Como sabes eu estou preso mas também não sou um homem mau. Viste como foi. Não sejas rabugenta e ajuda o Pedro. Se ele estiver birrento lembra-te que ainda é um bebé e tu mais crescida que ele. O que eu não gosto é que sejas egoísta porque é muito feio. Se alguma das tuas amigas querem tudo para elas deixa lá. Elas fazem mal mas tu não. Explica-lhes que não devem ser egoístas. Tem cuidado com os sugos e outras porcarias iguais porque podes ficar sem dentes. Depois, mesmo que os queiras ter já ninguém te os pode pôr. Ficas como os velhinhos. Alguns deles tinham a mania de comer guloseimas, gelados e caramelos. E também chocolates.
Eu lembro-me muito de ti e do Pedro. O Zé ainda não cortou as barbas? Diz à Lena que eu não gosto que ela seja desarrumada.
Todos têm que ajudar a mãe e a Dina.
Muitos beijos do
Zeca Pai
Caxias, 13-5-1973
Todos sabemos que a maior parte da sua obra poética não foi musicada. Também sabemos que musicou outros poetas, Camões, Pessoa, Sena, António Quadros pintor, Ary, António Barahona, Ferreira Guedes Luís Andrade, Paulo Armando e António Aleixo. Estas cantigas, como toda a sua obra, mais lírica ou mais interventora, com ressonâncias épicas, são notavelmente alguns dos grandes momentos da nossa música dita popular, pela forma rigorosa como articula os sons com a respiração poética, como nos alerta e nos convoca.
Pouco se repara na construção da canção dos Vampiros, na simplicidade inultrapassável das palavras para o objecto que se propõe, na tessitura epopaica em que a metáfora se desfaz e se refaz, para se metonimizar em denúncia do poder arbitrário e do capital sôfrego, como escapa a muitos a densa ternura do Menino do Bairro Negro, a quem se devolve a esperança do sol nascente, a luz da redenção, o novo dia de todas as auroras, como se um embalo, onde comovida a ternura se expande e purifica.
Escolhi estes porque são as suas primícias, mas validamos por igual o baú de todos os seus tesouros.
Não me chegava toda esta noite, não chegavam muitas noites e toda a vossa paciente benevolência para percorrer a obra poética do Zeca onde se reconhecem cerca de duzentos poemas, que entrelaçam a fina ironia com as transparências líricas do amor e da morte, mas sempre a claridade solidária e a notação de um futuro a haver, com a chama empunhada para luminoso caminho dos humildes e a palavra apontada a todas as iniquidades. Cantou a esperança, como cantou a raiva e a revolta.
Cantou as lonjuras da planície heróica e olhou como irmão as suas gentes, musicou peças de teatro com canções marcantes, notificou-nos para a nossa responsabilidade cívica com cantigas de todos os Maios, no abraço a quantos amigos maiores que o pensamento, vieram nas estradas, convocou-nos para as fileiras clamando pela amizade solidária, trouxe a estrela d’alva ao sonho dos meninos, soltou pombas brancas e chamou-as ao nosso desassossego, alertou os submissos e apelou a mudar de rumo as formigas no carreiro, balada de Outono de águas de um rio da esperança que volte a cantar, com ceifeiras a olharem a morte saída à rua na paleta do pintor, linóleo de Dias Coelho atravessado pelo tiro da raiva traiçoeira numa rua de Alcântara, com Catarina no tempo, porque se um homem se põe a cantar, vejam bem, amigos, que não há só gaivotas em terra, e é preciso ensinar o sonho, maduro Maio para os índios da meia praia saberem como encontrar o lugar, para que todos os homens, seus irmãos, ergam punhos bem apertados ao internacionalismo das mais ridentes utopias, de pé, pois
Não basta pregar um prego
Para ter um bairro novo
Só unidos venceremos
Reza um ditado do povo.
Para sempre o Zeca se ficou nas suas tamanquinhas porque plantou a semente das palavras e elas aí estão, aí ficaram, com elas vamos, e ainda aqueles que ficarem, os que se afastaram no caminho, os que perderam élan e agora partilham da taça do vinho novo, encontrarão sempre, se souberem ouvir, se ler souberem, se pensarem até doer, que em Coimbra tudo começou no tempo em que em flor se abriu a sombra da sua capa, para nos contar baixinho contos de amor velhinhos em qualquer noite fria e triste, porque ao lembrá-lo, aqui reunidos numa celebração eucarística, amigos, companheiros, senhoras e senhores, para todo o sempre, a cabra da velha torre, de todos os amores, chora por ele, chora por nós se não soubermos honrar a sua memória.
Disse
José Henrique Dias
1 Comment:
Faltou salientar o facto de que este texto foi preparado pelo Prof. José Henrique Dias para fazer a Evocação a Zeca Afonso na IX Grande Noite do Fado Académico.
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