4 de agosto de 2008

José Afonso por Daniel Abrunheiro

1
A comoção é o mais evidente sinal de que também o coração pode ser inteligente.
Se hoje (se ainda hoje) nos comovemos perante a voz, a figura e o exemplo de um tal José Afonso Cerqueira dos Santos – provavelmente, é porque nos sucede sermos portadores de um coração inteligente, de uma alma com memória e, ainda, de algo a que se pode (e deve) chamar gratidão.

2
O tal senhor chamado José Afonso Cerqueira dos Santos tornou-se no Zeca. O Zeca de todos nós. O Zeca como só ele. Nasceu em Aveiro no dia 2 de Agosto de 1929 e começou a resistir praticamente desde então. Dizem que morreu no dia 23 de Fevereiro de 1987. A pessoa física, sim: morreu. O artista, o músico, o cantor, o poeta e o compositor, esses todos que ele era em um só corpo, esses não morreram. Nós somos, hoje e aqui, amanhã e acolá, a mais fundamentada prova de vida de Zeca Afonso.

3
Poucos homens e poucas mulheres podem ser recordados como tão altos. Poucas mulheres e poucos homens fizeram tão bem rimar existência com resistência. O Zeca Afonso foi sempre, é na mesma e sempre será um pássaro que nos falava de gaiolas. Um poeta do “raio de sol queimado”. Popular sem populismo, libertário sem libertinagem, consciente da dupla condição da vida: breve no corpo, perpétua na voz. Temos de aprender a ouvi-lo de novo: ele continua a dizer o dia de hoje.

4
Para o fim da vida, na última das suas casas, tinha pelas paredes o rasto gráfico do momento mais alto da sua e da nossa vida: o 25 de Abril de 1974. Foi dele que veio a madrugada cantora, a aurora marchante, os compassos morenos da primeira cidadania que, ao fim de tantos anos escuros, nos foi permitida. Zeca Afonso não era, não foi e não pode ser ouvido como a “cassete” do 25 de Abril. José Afonso é o 25 de Abril – mais alguns homens e mais algumas mulheres.

5
Das canções mais imediatas às de maior densidade semântica, o Zeca Afonso devolveu à língua cantada e à música popular aquilo que, depois dele, lhes vem sendo indecorosamente roubado: a dignidade expressiva de um coração inteligente e de um pensamento solidário. Ou seja: uma poesia e uma música que são, de facto e deveras, para todos.

6
Da renovação da balada coimbrã (a partir de novas ousadias harmónicas, melódicas e líricas) à inconfundível obra pessoal dos discos posteriores, o Zeca Afonso é sempre alguém que nos trouxe algo para puro efeito de partilha. Não há solidão na música e na poesia de José Afonso. Só há solidariedade. Até porque nenhuma multidão começa sem se estar sozinho.

7
Esquerda, extrema-esquerda, reviralho e revisionismo, direita e extrema-direita: todas as franjas do espectro político-social do nosso País, nos últimos 33 anos, continuam a ser tocadas pela graça magistral deste homem que queria tirar, do homem, o lobo do homem. A aparente facilidade da sua obra é, provavelmente, o único engano que ele nos legou: a obra dele é tudo menos fácil. Mas é de todos. Ele não ficou com ela só para ele. É nossa.

8
A glória do Zeca Afonso não é de panteão nacional. Não é uma gloríola de 10 de Junho, de verso e reverso de medalha. Não aceitou nunca ser general. Era um homem de pão, paz e pombas: era um português, como há já tão poucos. Pelos menos, com memória de sê-lo: português não aduaneiro, não missionário, não superior a ninguém. É uma estrela – certamente: mas uma estrela humilde. E pessoal. E transmissível.

9
Depois do 25 de Abril fundador da nossa Liberdade, José Afonso Cerqueira dos Santos não chegou a existir fisicamente sequer 13 anos. Resta-nos, dele, a pedra aérea, a pedra leve, a pedra definitiva dos seus versos humanistas e humanizadores. Isso e a estranha pureza da sua música nova, das suas canções em que é tão fácil reconhecer a grandeza. O legado do Zeca é o canto livre, moço, resistente e lúcido. Não é para trautear. É para cantar mesmo.

10
Não há rótulos a colar ao corpo deste operário que hoje recordamos. O Zeca está para além de qualquer autocolante. Não há gaveta onde o possamos arquivar sem risco de uma amnésia mortífera. Por isso o celebramos em vida. Dizem que morreu há duas décadas. Talvez o portador de bilhete de identidade tenha cedido à doença. O que não é possível, de modo algum, é renegar a evidência da sua presença em cada madrugada. A noite só vem se nos esquecermos. Dele e de nós.

1 Comment:

Anónimo disse...

Gostei muito do texto.
É bem verdade que o Zeca não morreu. Quem não o vê é quem não sente. Penso muitas vezes naquilo que o Zeca se tornou para todos e no que ele representa. Ainda hoje pensava que até mesmo a sua figura é ainda muito viva. Cheia de presença. Tivesse eu vivido na sua altura e certamente o teria conhecido.
Parabéns pelo texto,
Bruno Borges