23 de agosto de 2009

Rui Pato em entrevista ao diário "As Beiras"


“Continuar a cantar com o Zeca”

Com o país e Coimbra a homenagearem José Afonso, o DIÁRIO AS BEIRAS falou com Rui Pato, o músico e médico que, com o poeta e cantor, escreveu uma página fundamental na história da cultura contemporânea em Portugal. Um novo canto que abriu caminho a muito e a muitos dos que cantaram e, assim, anteciparam a liberdade.


Como é que aconteceu o encontro entre Rui Pato, então um jovem estudante de liceu, e José Afonso?

Estávamos no início dos anos 60 e eu já tocava viola num grupo de fados no Liceu D. João III (actual Escola Secundária José Falcão), de que faziam parte Francisco Martins, guitarrista, mas também Carlos Encarnação, num grupo de jovens da média burguesia da cidade que aprendiam a tocar viola e guitarra, no qual eu me incluía e que era patrocinado de alguma forma por António Portugal. Portanto, eu tinha já alguma prática no acompanhamento de cantores, além de ser também um autodidacta de viola clássica, com uma prática e um saber que era pouco habitual naquela altura, em Coimbra. O Zeca Afonso era amigo do meu pai [Rocha Pato, jornalista e chefe da Delegação de Coimbra do 1.º de Janeiro], que conhecia toda a gente do fado, na tertúlia da Brasileira, na Baixa. Quando o Zeca, já depois da sua passagem em Coimbra, como estudante e cantor do fado tradicional, já professor, regressa a Coimbra para mostrar aos amigos um modelo novo de canções, vai ter à Brasileira. Mas para se ouvirem as coisas novas era necessário um acompanhante à viola. Como eu tocava viola e o meu pai o lembrou, foram todos para minha casa para o Zeca mostrar as suas primeiras canções. E foi então que eu ouvi pela primeira vez as coisas novas do Zeca, que fui acompanhando à viola de uma maneira de que ele gostou. E pronto, nasceu ali a ideia de passar a acompanhar o Zeca Afonso, o que aconteceu logo até num primeiro disco, que também foi sugerido na altura.

E esse foi o momento em que apareceu o canto novo e se cimentou a sua ligação a José Afonso?
Exactamente. As canções que o Zeca cantou foram algumas das que depois se transformaram em símbolos, como “Os vampiros”, “O meu menino é de oiro”, “Tenho barcos, tenho remos”, aquelas primeiras coisas que ele gravou, que eu acompanhei, e que depois se transformaram em grandes sucessos. Seguiram-se um segundo disco e um terceiro. Comecei depois a acompanhar o Zeca em espectáculos um pouco por todo o país, o que aconteceu entre 1963 e 1969, na altura da crise académica. Ainda antes, por altura de 1965, comecei também a acompanhar o Adriano [Correia de Oliveira], o que voltou a acontecer com o António Portugal, o Pinho Brojo, o António Bernardino, numa actividade quase febril.


A crise académica veio quebrar essa ligação?

Chegamos a 1969 e como eu era dirigente académico fui castigado, foi-me retirada a possibilidade de ir para o estrangeiro e, por isso, não pude acompanhar o Zeca que começou a gravar lá fora em condições completamente diferentes daquelas que tinha em Portugal. Mas continuei a acompanhar o Adriano em 1969, em 70, ainda gravei com ele “O canto e as armas”, com poemas de Manuel Alegre. Em 70, 71, 72 ainda acompanhei o Adriano, ainda fiz várias coisas com o António Portugal, com o Brojo. Depois disso, quando me formei em Medicina, em 1972, dediquei-me ao exercício da profissão e só muito raramente fazia música, o que voltou a acontecer com o Adriano numa Festa do Avante e, depois, a pedido do Zeca, no seu último concerto no Coliseu, onde eu o acompanhei em três temas dos seus mais antigos.

Depois a medicina acabou por triunfar, embora a música continue a fazer parte da sua vida?
Exactamente, sempre. Eu costumo dizer que médicos há muitos... e não é só pelo gosto que eu tenho pela viola e pela música. É também porque eu considero que qualquer actividade profissional – e muito mais a medicina – beneficia se tivermos um outro interesse, de preferência ligado à arte, a música, a pintura, a escrita. Um médico que não faça mais nada para além da medicina é um homem limitado e, talvez por isso, há tantos médicos escritores, músicos, pintores.


E, de facto, há muitos médicos ligados às artes.

Sim. Também porque esta é uma profissão que tem uma grande componente humanista, um grande contacto com a realidade, com a tristeza, mas também com a alegria... o que nos enriquece bastante. Portanto eu, não digo que todos os dias pego na viola, sobretudo agora com a responsabilidade do conselho da administração [do Centro Hospitalar de Coimbra], mas tenho as violas sempre à mão. E quando me libertar de tudo isto e me aposentar, tenho um grupo de amigos que continuam a tocar e que eu vou passar a acompanhar mais, porque considero ser enriquecedor.


O que é que guarda daquele momento fundamental que foi o nascer de uma nova canção?

Claramente. Mas – e eu costumo dizer isto muitas vezes – só mais tarde é que soube que estava a viver um momento histórico quando comecei a acompanhar o Zeca. Eu na altura não me apercebi da dimensão do momento que estávamos a viver, o que aconteceu também com muitos dos seus amigos, com excepção talvez para um ou outro mais clarividente. E entre os amigos que mais lidavam com o Zeca na Brasileira estavam o Abílio Hernandez Cardoso, o Rainho, o Pedro Olaio, outras pessoas que já faleceram, como o meu pai, o sr. Amado, que tinha a Casa Amado em frente à Brasileira... Havia ali um grupo de amigos, também alguns estudantes quase ainda do tempo dele, que estavam nos Kágados e na Baco, repúblicas onde o Zeca Ficava quando vinha a Coimbra, a quem ele mostrava estas coisas novas. O facto é que as pessoas ligadas à música em Coimbra ainda estavam numa fase muito tradicionalista, mesmo os que mais tarde evoluíram e deram importantes passos em frente, como o António Portugal. O que aconteceu com as novas canções do Zeca foi um choque muito grande.


Numa cidade fechada...

Numa Coimbra ainda quase medieval, onde não se fazia mais nada a não ser o cantar melancólico das serenatas, aparecer alguém a cantar “o meu menino é d’oiro” ou “os meninos do Bairro Negro”... É evidente que o Zeca partia de uma cultura, no meu entender, francesa, de um Léo Ferré, do Georges Brassens, do Brel. Ou seja, de um contexto já com uma intenção que não havia em Coimbra, embora houvesse já esboços, nomeadamente no Edmundo Bettencourt e até no Fernando Machado Soares. Portanto, em Coimbra, naquela altura, ninguém levou o Zeca muito a sério, embora alguns achassem que aquilo era interessante e que era preciso ser gravado. E quando o disco saiu foi um pouco um escândalo em Coimbra, precisamente porque na capa dizia “Dr. José Afonso: Baladas de Coimbra”. Então quase caiu a Torre, numa tal afronta à tradição.


Qual foi o momento de viragem na aceitação à música nova de Zeca Afonso?

Com o segundo disco, com “Os vampiros”, com o “Menino do Bairro Negro”, começaram os intelectuais de esquerda e os movimentos operários, sobretudo da margem Sul do Tejo, a convidá-lo, o que acontece também nos saraus das crises académicas, em sessões de canto, num claro apoio da esquerda. E nessa altura fomos imediatamente conotados com uma canção de combate, eu passei a sentir a minha viola como uma arma, uma força de combate.


E Coimbra, entretanto?

Coimbra ignorou completamente Zeca Afonso. Também porque, na altura, era a direita que dominava a Associação Académica. Só quando a esquerda ganhou a AAC e começou a fazer os seus saraus é que Zeca começou a vir a Coimbra, o que aconteceu muito pouco. Eu lembro-me de tocar com ele uma vez num sarau no Teatro Avenida e outra vez no ginásio [actual cantina dos grelhados] do Jardim da AAC [momento que a foto da página 2 documenta].


E a sua percepção da importância que tudo aquilo tinha?

Isso apenas aconteceu um ano ou dois depois de eu acompanhar o Zeca. Só então percebi a importância do canto do Zeca e da minha própria contribuição para ele. Porque o que aconteceu foi mostrar um novo modelo de acompanhamento, um instrumento muito discreto que serve quase só para sublinhar o poema.


Porque o que se queria dizer é que era importante?

Exactamente. E essa não era a prática dos acompanhantes, à guitarra e à viola, na altura. E eu, de uma maneira muito intuitiva, consegui responder a esse desafio que acabou por ser pioneiro num modelo de acompanhamento. Paralelamente a tudo isto, o Zeca foi também para mim um educador. O Zeca era um homem diferente, com um sentido de humor extraordinário, as suas histórias, as suas distracções patológicas, com uma preocupação sincera para que os seus amigos evoluíssem, ele trazia livros, emprestava-os, discos. Por isso também, o Zeca contribuiu muito para a minha formação cultural e política, embora o meu pai e o meu avô já fossem homens de esquerda.

José Afonso “foi o bandeirante de uma grande aventura”


O que é que Portugal deve a Zeca Afonso?

Deve muito. O Zeca foi o homem que contribuiu decisivamente – e não tem outro a par dele – para uma revolução cultural naquilo que era a música portuguesa. E isto é reconhecido por toda a gente. Não há nenhum músico, nenhum grande cantor, nenhum grande poeta cujo despertar para uma nova música, para uma nova canção, não tenha partido do Zeca, que foi o grande ousado, o que deu o primeiro passo. Ele é que foi o bandeirante desta grande aventura. Havia muitos – que depois nós fomos conhecendo – que vieram a assumir-se naquela linha de inovação, mas apenas depois do Zeca o ter feito. Havia um caminho que não tinha sido ainda desbravado. E foi o Zeca quem o fez e quem conduziu muitos dos que fazem hoje uma página fundamental da história da música portuguesa.


E em que é que devemos guardar José Afonso?

Eu tenho dito muitas vezes e vou continuar a dizê-lo. A grande homenagem que se pode prestar a José Afonso é não deixar que a sua obra morra. E a intemporalidade dos seus poemas e das suas músicas tem-se demonstrado até com a adesão de muitos jovens músicos. A melhor homenagem é continuar a cantar com o Zeca. Que os nossos filhos e que os nossos netos continuem a conhecer a sua obra e continuem a cantar “venham mais cinco”. O pior que pode acontecer a um artista é deixar cair a sua obra no esquecimento. E nós, com o Zeca, corremos esse risco aqui há uns anos. Houve uma altura em que ele passou por cantor maldito, de novo, porque já tinha acontecido no tempo do fascismo. Mas depois, mesmo após o 25 de Abril, houve de novo esse estigma, depois a sua doença, toda essa situação fez com que ele tivesse passado um pouco por uma fase de Lua nova, não se via, mas existia. Entretanto, os músicos de Lisboa organizaram aquele belo momento de reabilitação, com o lançamento de um disco em que variadíssimos artistas cantaram músicas do Zeca. Agora, quer sejam portugueses, quer sejam espanhóis, há muita gente a cantar Zeca Afonso. E essa é que é a grande homenagem que se lhe pode e deve fazer, independentemente de tudo o que possa fazer-se em sua memória, como o programa que está agora a acontecer em Coimbra.


E Coimbra estará, para sempre, ligada a José Afonso?

Sem dúvida. E o Zeca, embora tivesse havido um tempo em que teve dificuldade em o reconhecer, mais tarde acabou por reconhecê-lo e voltar um pouco às suas origens. Sobretudo com o lançamento daquele disco de fados de Coimbra. Aquilo foi quase o tentar fazer as pazes com uma altura em que ele tentou demarcar-se de Coimbra e do que por cá se fazia. Embora ele tenha sido sempre muito crítico e tenha feito a sua crítica à cidade com uma ironia muito própria, muito dele, a esta Coimbra que andava toda à volta da Torre, à volta de uma espécie de aristocracia universitária, muito provinciana. Mas, de facto, foi em Coimbra que José Afonso nasceu como cantor, foi aqui que apendeu muito, também com o seu contacto com os futricas da cidade, com a Alta, com a Baixa. Quando falávamos com ele, a conversa acabava sempre no Mário do café tal, no tipo que vendia cautelas na Baixa, no sapateiro da rua x... Ele tinha um repositório extraordinário de figuras de Coimbra, da Coimbra de sempre e adorava recordá-las e revivê-las.

Lídia Pereira

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