Disse Jorge Luís Borges: Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças, se tivesse outra vez outra vida pela frente. Escreveu António Gedeão: Nesta insignificância, gratuita e desvalida, Universo sou eu com nebulosas e tudo. William Shakespeare afirmou: E aprendes que não importa o quanto te importas, porque algumas pessoas simplesmente não se importam…Tendo estas citações como preâmbulo do trabalho que irei construindo, tomando o papel como base e o conhecimento como ferramenta, lembro ainda como aperitivo as sábias palavras do poeta militante Pablo Neruda: Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito, repetindo todos os dias os mesmos trajectos, quem não muda de marca, não arrisca vestir uma nova cor, ou não conversa com quem não conhece. E porque também eu, Leonel Coelho, sou gente, relembro o que publiquei dirigido aos jovens: Aos que escrevem, aos que contam, ilustram, anotam, apontam, aos excluídos, aos deserdados, aos de pouca ou nenhuma sorte, olha a todos com o coração, com toda a tua alegria e grita-lhes – oh gente minha, Bom Dia.
Eu podia dizer a quem nos ler que vou agora falar sobre o Zeca, mas não. É do Zeca que estou a falar quando afirmações, conselhos ou opiniões afloram como flores ou espadas de outros Zecas. O Zeca que eu conheci aqui na nossa Academia de Alhos Vedros, na nossa rua, ou na casita onde ainda moro, construi-se bebendo nas fontes que aqui invoco, que aqui recordo e com quem convirjo. O Zeca simples, humilde e enigmático que eu conheci era o nosso pombo-correio. Ele saltava de Setúbal para a Baixa da Banheira, Seixal, Barreiro, e trazia tarjetas para recolhas de auxílio aos presos políticos, escondia-se nas casas dos amigos, tinha a noite como companheira favorita e protectora. O Zeca com a sua guitarra, as velhas calças de bombazina e a sua esfiapada camisa aos quadradinhos, chegava e passado muito pouco tempo já toda a gente passava palavra: o Zeca está na Academia! E era a maré-cheia. A extraordinária juventude expandia-se, agigantava-se e aconteciam palavras, olhares, entusiasmos. Era contagiante. Quando o evocamos no velho cemitério da Piedade, em Setúbal, é o seu incomparável entusiasmo que pretendemos reavivar, tal como o ferreiro reaviva a forja, a padeira anima o forno, ou o guerreiro limpa as armas em tempo de paz com guerras no horizonte. É meu dever que cumpro com gosto, referir que é pela mão do meu velho amigo Dr. Afonso de Albuquerque que o Zeca Afonso desembarca, já não sei bem quando, aqui na Academia. Depois foram as sopinhas de couves quentinhas que a minha mulher servia ao Zeca. Partilhávamos então notícias sobre greves, prisões, torturas e até assassinatos. A PIDE estava lá fora, hedionda, traiçoeira e sempre pronta a saltar sobre nós. Pela mão do Zeca aqui vieram cantores, escritores, jornalistas, actores e políticos: Padre Fanhais, Fausto, Benedito, Letria, Castrim, Alice Vieira, Rogério Paulo, Yevetutchenco, Sotomaior Cardia, João Mota, Grupos de Teatro, etc. Nunca houve nada programado na Academia. A sala era o palco. Passava-se a palavra e a festa estava no ar. Nas ruas montávamos vigilância e muitas vezes corremos a PIDE à pedrada até ao comboio. Mercê de tudo isso sentimos na pele os interrogatórios, a prisão e a tortura. A Academia era uma casa permanentemente vigiada e sempre perseguida. O Zeca deixou marcas indeléveis de luta e solidariedade em toda a juventude da nossa terra e da nossa região. O Bairro Gouveia e as Arroteias foram os que mais livremente usufruíram a contagiante personalidade do amigo Zeca. Aqui na Academia nunca ninguém nos derrotou. A presença do Zeca era a nossa fortaleza e nós bem sabíamos que ainda havia o Luís Cília e o grande Amigão Adriano Correia de Oliveira, homem a quem me dobro e agradeço o muito que aprendemos. Não esquecer também o papel relevante que o Zeca teve na formação da juventude daqui. Essa mesma juventude que acorreu em força à grande manifestação de luta e pesar que constituiu o funeral do estudante Ribeiro Santos, militante do MRPP assassinado pela PIDE decorria o ano de 1972. Foi ainda acerca da Guerra Colonial que Zeca Afonso mais lutou e ensinou, sendo por ele e por outros camaradas dados os primeiros e mais importantes passos contra aquela guerra tão nefasta ao nosso povo e aos povos africanos.
Em rodapé, mas com as honras que lhe são devidas, de referir a mão do Zeca na vinda à Academia do Coro dos Amadores de Música e do seu prestigiado maestro Fernando Lopes Graça, Areosa Feio, prestigiado anti-fascista, Manuel Cabanas e muitas outras figuras que honraram a nossa casa e acrescentaram à nossa terra valores culturais, colocando-a na primeira fila da luta pelo derrube da ditadura salazarista. Jornais como o “Comércio do Funchal”, “Jornal do Fundão” e “Notícias da Amadora”, narraram em devido tempo os nossos combates, as nossas vitórias. As canções do Zeca andavam por aqui de boca em boca. A presença do Zeca, o seu trabalho em clubes, tertúlias e festas, assume quinhão relevante na vitória que aconteceu nas eleições de 1969. Nestas eleições a União Nacional salazarista saiu de rabo entre as pernas, cabisbaixos e vociferando ameaças. Na noite de 3 de Maio de 1970, a PIDE prendeu só duma assentada Stalin Jesus Rodrigues, Leonel Coelho, Álvaro Monteiro, Gravatinha Lopes, Zacarias, Matos, A. Chora e F. Cunha. Por tudo isto, o Zeca vive e será sempre uma bandeira. Acabo por informar os mais descuidados que o Zeca às vezes nem tinha dinheiro para uma sopa. E não esquecer que estamos a falar do Dr. José Afonso Cerqueira dos Santos, o poeta, o professor, o músico, o lutador e o Amigo. Honra, pois, ao Zeca.
1 Comment:
Obrigada por terem resistido!
É a gente assim, aquela que acorria à academia e aos outros, aos Zecas, ao ZECA, a todos os que na luta estiveram, que devemos a LIBERDADE!
Mas, apetece dizer - e se hoje fossemos capazes de ressuscitar as "academias"?
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