25 de fevereiro de 2011

Para que o não esqueçamos

Tinha 57 anos e manteve, até ao remate dos dias, aquele sorriso meio-cândido, meio-malicioso, que lhe conferia o ar de menino de sempre. Pouco tempo antes conversámos numa leitaria à entrada das Escadinhas do Duque, das duas ou três tertúlias da zona a que chamávamos o Triângulo das Bermudas. Não era um local de perdição, ao contrário do que a alcunha pode querer dizer. Mas os encontros poderiam levar-nos pela noite adiante.

Os mesários dessas reuniões eram, entre muito outros, fixantes e passantes, Herberto Hélder, António José Forte, António Carmo, Aldina Costa, José Carlos González, Ricarte-Dácio de Sousa, Adriano de Carvalho, Serafim Ferreira, Teresa Roby, Luiz Pacheco, os actores Fernando Gusmão e António Assunção, e por aí fora. Olho para trás e reconheço que esses encontros são irrepetíveis, não só porque a morte já fez a sua ceifa como pelo facto de a atmosfera moral e afectuosa ser, agora, muito diferente.

Frequentei aqueles grupos durante anos. O "Diário Popular" era ali perto e dava-me jeito ir à bebida e à conversa com amigos, alguns dos quais (o Herberto, por exemplo) vinham dos bulícios da adolescência. O Zeca Afonso não era habitual; mas, naquele fim de tarde, sentou-se para conversar sonhos e esperanças tão antigos como o homem. "Estou a morrer devagarinho", disse-me. E a voz era como se viesse do fundo do corpo. A frase impressionou-me pela coragem. Ele sabia que estava condenado e talvez quisesse dizer-me que o sabia. Falou, logo a seguir, de outras coisas. Olhava para este homem novo, atingido por uma doença medonha, e recordava a generosidade limpa e aberta de alguém que dera tudo a todos e oferecera à Revolução o seu hino definitivo.

O Viriato Teles, grande jornalista que os senhores dos jornais têm laminado mas não destruído, escreveu, sobre o amigo e companheiro, páginas definitivas, e conhece, como ninguém, a dimensão da grandeza de uma pessoa rara. Mas o País ainda não homenageou o poeta admirável e o cantor de palavras claras que esteve sempre com as causas justas, as batalhas necessárias e as urgências que a História exigia. Melhor do que nós, fazem-no os galegos, para os quais José Afonso é um marco e um símbolo da dignidade e da probidade humanas.

Os textos de "intervenção" que escreveu pertencem à mais rigorosa selecta da lírica portuguesa.
Provêm, directamente, das fontes medievais e da tradição de combate e crítica da grande poesia. Zeca Afonso não facilitava a interpretação dos seus poemas. A diversidade de leituras que propõem sugeriu muitos estudos no estrangeiro e o respeito de duas ou três gerações que ele distinguiu com a lição de um desprendimento total.

Comparar a obra do poeta às "cançonetas" "dos" Deolinda, como por aí se tenta, é um ultraje e uma demonstrada ignorância. Mas estas comparações não são ingénuas. Fazem parte do arsenal de apoucamento do Zeca, que um sector da vida portuguesa deseja, há muito promover. É desnecessário. A força, a qualidade do imenso trabalho criador do autor de "Traz outro amigo também" não sofre paralelismo com outro qualquer. O que não passa de uma funçanata divertida e trôpega dificilmente poderá ser levada a sério e entendida como "intervenção social e ideológica." As comparações são propositadamente estabelecidas (inclusive por alguma Imprensa desprezível) para fomentar a confusão e enganar tolos. A estratégia não é nova. Ainda há quem não perdoe a Zeca Afonso a magnitude do seu talento e o cariz de uma arte que sempre recusou o panfleto sem desprezar a intenção de revolta.

No dia 23 de Fevereiro completaram-se 24 anos sobre a data da morte de um grande poeta português. É muito bom que, sob outras roupagens, a sua música e as suas palavras sejam cantadas pelo pessoal mais novo e ouvidas por todos aqueles que possuem da arte um conceito diferente porque superior. Quanto a mim, que fui amigo deste português incomum, deste artista sem paralelo, recordo-o com emoção, encantamento e orgulho. Ele faz parte do nosso comum património moral, ética e estético.

4 Comments:

Carlos Letria disse...

Caro Batista Bastos.
Ambos estamos de acordo quanto aos maus tratos que a obra do Zeca tem sido vitima. Permita-me só discordar da forma injusta como ataca o trabalho dos Deolinda.
Em primeiro lugar, creio que desconhece o grande trabalho que os Deolinda têm feito na música popular portuguesa, trabalho esse que é reconhecido por nomes como Zé Mário Branco, por exemplo, que como se sabe produziu as melhor fase do Zeca. Depois, as comparações nao creio terem sido veinculadas pelos próprios Deolinda, por isso nao serão eles os culpados dessas comparações. Por ultimo penso que este tipo de ataque a uma jovem banda portuguesa com créditos firmados a nível nacional e internacional, vem completamente contra os valores que o Zeca nos deixou, de abertura de espirito à novidade e pelo bem da música popular posturas. Só acrescento mais um ponto, dizendo que este tipo de defesa cega só contribui para a sua desvalorização em vez de servir a nobreza do grande legado que o Zeca nos deixou.
Os melhores cumprimentos,
Carlos Vasconcelos Letria

Carlos Letria disse...

Caro Batista Bastos.
Ambos estamos de acordo quanto aos maus tratos que a obra do Zeca tem sido vitima. Permita-me só discordar da forma injusta como ataca o trabalho dos Deolinda.
Em primeiro lugar, creio que desconhece o grande trabalho que os Deolinda têm feito na música popular portuguesa, trabalho esse que é reconhecido por nomes como Zé Mário Branco, por exemplo, que como se sabe produziu as melhor fase do Zeca. Depois, as comparações nao creio terem sido veinculadas pelos próprios Deolinda, por isso nao serão eles os culpados dessas comparações. Por ultimo penso que este tipo de ataque a uma jovem banda portuguesa com créditos firmados a nível nacional e internacional, vem completamente contra os valores que o Zeca nos deixou, de abertura de espirito à novidade e pelo bem da música popular portuguesa. Só acrescento mais um ponto, dizendo que este tipo de defesa cega só contribui para a sua desvalorização em vez de servir a nobreza do grande legado que o Zeca nos deixou.
Os melhores cumprimentos,
Carlos Vasconcelos Letria

Paula Queiroga disse...

Na minha opinião, este texto com tanto azedume não honra nada a memória de José Afonso.

chico da EMILINHA disse...

Uma vez que a crónica, escrito ou o que lhe queiram chamar, vem de outra fonte que não o BLOGUE, mas na esperança de que Batista Bastos se dê ao trabalho de ler, uma vez por outra, digo:
Sim o Zeca é insubstituivel, como ele não gostaria de ser certamente.
O senhor Batista Bastos, também o será em certa medida, pese embora não concordar com algumas opiniões, gosto, não repudio, nem ponho rotulo.
Quer-me parecer que Batista Bastos, não se estava a referir aos Deolinda em termos depreciativos, mas sim a gente que escreve e compara ou tira ilações, eventualmente com propósito menos correcto,, acho que ele tem mesmo razão, ainda por cima é do meio.

Não quero, porque não sou o ZECA ( nem acho que alguém o seja, ou possa sequer falar em nome dele ), estar para aqui a arrengar sobre o que se ouve ou deveria ouvir, se é correcto gente nova cantá-lo, modificando mesmo,,,, ele concerteza que gostaria,, aliás muito os fizeram na altura e ele gostou,,,, é ETERNO, não se esqueça isso e faça-se por não ser esquecido,,, e mais a mais, tenho para mim que o ZECA partiu, embora sempre a lutar, desiludido com o rumo que as coisas tomaram de imediato,, mas claro isso sou eu a pensar,, é uma chatice por vezes um gajo pensar