10 de fevereiro de 2006

Zeca Afonso e Lobão

Quando li, e ouvi, o verso “o que é preciso é animar a malta”, de uma composição de Zeca Afonso, fiquei extasiada. E mais ainda ao ler, e ouvir, “...Eles comem tudo/ E não deixam nada./ No chão do medo/ Tombam os vencidos...”, de outra composição do famoso músico-poeta português. E o “chão de medo” fez-me lembrar Lobão, o revolucionário músico-poeta brasileiro, que compôs “Perdoa a fúria do meu sonho/ A violência me distrai/ Pois a violência.../ É você!”. Na dinâmica dos dois compositores encontrei um ponto comum: a perpetuação do instante emocional, político e/ou amoroso, que revoluciona.

Embora a realidade dos dois seja bem diferente, une-os a batalha contra os colonialismos políticos e burocráticos que dimensionam a Música Popular como peça mercantil, ou Produto, não como Arte. “Zeca Afonso gerou, entre os Anos 60 e 70, o que se pode nomear como a mais autêntica Música Lusófona ao aplicar nas suas composições as variantes sócio-políticas e culturais que conheceu em Portugal, Moçambique e Angola, e isso determinou que pusesse de lado a Guitarra Portuguesa, no modelo ´fado-balada´ de Coimbra, para passar a trabalhar com a Viola e outros instrumentos, no que ganhou uma estética musical peculiar, com uma sonoridade tirada dos confins das músicas populares portuguesa e africana...”, escreveu o poeta J. C. Macedo, que conheceu e até acompanhou Zeca Afonso em vários eventos sócio-políticos, na efervescência do ´processo revolucionário em curso´ [prec]. O próprio poeta encarava, na época, a questão “lusofonia” como um palavrão a ser estudado com maior cuidado, mas é certo que caiu muito bem no contexto da explicação sobre a sonoridade conseguida por Zeca Afonso. E este, no conjunto da sua Obra, não poderia ser adotado nunca como peça mercantil ideal pelas editoras convencionais: Zeca Afonso era a antítese do artista-para-consumo. Quer o regime fascista de Salazar, quer as editoras que lhe publicavam os trabalhos fonográficos, tentaram muitas vezes silenciar aquela Voz-Poema... Assim acontece com “...Lobão, o brasileiro que canta o Amor com a mesma paixão da Revolta Social, porque o estado emocional determina a Arte, determina a Sociedade...”, na definição de Prof. Mário Gonçalves de Castro. Os dois músicos e poetas do que agora é chamado ´espaço lusófono´ concentraram os seus esforços no desvendamento das peculiaridades estética do Povo, e nesse trabalho proporcionaram a si mesmos “uma meta-linguagem de rupturas, [re]criadora da mais valiosa participação artística do Povo: a Estética estabelecida como chave para a Nação mental”, no dizer de João Barcellos, a propósito da “ruptura que só o é ao gerar a ´coisa´ nova, o ´ser´ novo, não o continuísmo...”. E foi o que eu percebi ao ler e ouvir Zeca Afonso para logo envolver Lobão.

O cântico poético é um dos caminhos da Liberdade. No final de 2004, a moçambicana Céline Abdullah ofereceu-me uma coletânea de trabalhos de Zeca Afonso que ela havia registrado em fita magnética, e uma carta – ouçamos a bela negra de Moçambique, em parte da ´orientação´: “[...] e se queres saber o que é Cultura Libertadora, ouve com atenção o canto de intervenção de Zeca Afonso, pois, ele, mais do que muitos portugueses e africanos armados até aos dentes, ajudou a libertar os nossos povos da tirania colonialista, que tem pilares no Catolicismo e na Cavalaria medieval. Para os portugueses e africanos sabedores da História recente, ouvir e cantar Zeca Afonso é não deixar cair a Revolução”. E ouvi. E li. E quis retribuir. O que fiz com a remessa de alguns trabalhos de Lobão, “porque ele, Lobão, é o mais fecundo e talentoso músico-poeta do Brasil autêntico, além de ser o brasileiro em ruptura com o sistema consumista que quer a sua alma revolucionária esmagada”, escrevi na carta. Que, antes de enviar, li para o amigo João Barcellos... “Sim, o Lobão é, hoje, um paradigma da Cultura Brasileira não-oficial, e pode-se aferir politicamente o seu trabalho com o de Zeca Afonso na emergência de uma Anarquia geradora do processo artístico-cultural revolucionário”, ouvi. Uns quarenta dias depois do início de 2005, Céline Abdullah endereçou-me um e-mail: “Realmente, Mariana, a Revolução está por todo o lado, e Lobão representa isso contra tudo o que é o fundamental do ´politicamente correcto´. Gostei de conhecer Lobão e o outro lado do Brasil que o mundo não conhece, ou conhece pouco. Agora, é preciso objectivar a união de esforços revolucionários, ou a acção de artistas e de intelectuais vai continuar isolada”. Gosto de Música, e gosto de dedilhar a minha viola, mas nunca pensei envolver-me tão profundamente em um assunto tão ´quente´ como são os do português Zeca Afonso e do brasileiro Lobão. Creio que um desafio até para muitos críticos do ramo...


Zeca Afonso [José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, 1929-1987] nasceu em Aveiro, uma região que foi a ´mãe´ de uma Consciência – verdadeiramente – Portuguesa, e em tenra idade partiu para acompanhar os pais nos seus afazeres profissionais em Angola e em Moçambique, mas voltou para fazer os estudos secundário e superior, em Coimbra, para ser, depois, professor. Os seus primeiros trabalhos discográficos foram publicados em 1953: eram fados de Coimbra. Ainda nesses Anos 50 conhece o alvor de uma política destinada a derrotar eleitoralmente Salazar: a campanha do general Humberto Delgado. Para ele, conhecedor da precariedade social em que o Catolicismo e o Salazarismo haviam mergulhado o Povo Português, a Campanha de Delgado iria abrir portas para democratização. Iria... o ditador manobrou nos bastidores para evitar a vitória daquele que havia ousado gritar “Obviamente, demito-o!” e ordenou que a polícia política o eliminasse da vida pública e política. Mas esse fato político mexeu com Portugal, e mexeu mais ainda com a emoção anti-fascista da jovem intelectualidade e dos artistas não engajados ao regime. Assassinado “o general sem medo”, em 1965, três anos depois, em plena era de terrorismo de Estado, “o professor Zeca Afonso foi expulso do Ensino e iniciou a sua peregrinação cultural e política contra o Fascismo; os comunistas queriam-no nas suas trincheiras, mas ele nunca seria um opositor politicamente correcto, mas ele-mesmo com o Povo...”, como escreveu J. C. Macedo.
Das suas viagens para Angola e Moçambique, ainda nas atividades universitárias, Zeca Afonso aprofundou os seus conhecimentos acerca da ´batida´ musical e emocional da África, assim como Lobão faz agora no reconhecimento da genuína musicalidade que é construída nos morros e favelas brasileiras, principalmente no Rio de Janeiro, musicalidade que é urbana e é rural, pela cumplicidade das levas migratórias. E “...com o conhecimento da diversidade cultural do Povo Português, Zeca Afonso transformou-se no elo captador-difusor dos quereres e dos sonhos do Ser-Português sem nunca esquecer o caminho africano...” [idem]. É esse Zeca Afonso, que já havia composto “Grândola, Vila Morena”, em 1964, a balada-senha que sinalizou o Golpe de Estado de ´25 de Abril de 1974´, revolucionário e agitador cultural, que vai marcar as gerações imediatas do ant e do pós ´25 de Abril´.

Lobão [João Luiz Woerdenbag Filho, 1957] foi, principalmente nos Anos 80, compositor. Tinha tudo para ser mais um carioca a olhar, de maneira turística, “o Brasil dos mafiosos e mesquinhos percursos da classe média que, afinal, sustenta uma Nação de elites dengosamente perdidas no abraço sanguinário do Capitalismo global e colonizador, do qual são cobaias e são escravas”, na análise do Prof. Carlos Firmino. Em vez disso, Lobão percebeu, como Zeca Afonso havia percebido em Portugal, a agressividade institucional que cercava o Povo, e nesse sufoco fez a leitura do não-Amor que o Consumismo e a Política incutiam/incutem no Povo Brasileiro. “Não é difícil pra quem não tem emoções/ Vendem crises/ Vendem misérias/ Vendem tudo até em mil prestações/ Estão brincando”, canta ele na e para a mais abrangente das linguagens: o eco da Consciência.
A práxis artística de Lobão, que tem base no Pop e no Rock´n Roll, ganhou ´batida´ brasileira ao compor para artistas como as cantoras Elza Soares e Marina Lima –, ´batida´ que ilustra o ganho cultural da amplidão musical rural que inundou os morros e favelas cariocas, e assim nasceu um Lobão ´pop-roqueiro´ com densidades melódicas entre a balada marcadamente amorosa e o canto corrosivo da urbanidade criminosamente policiada. Tão policiada que artistas, nascidos até no combate a esse status quo social, passaram [e passam...] a fazer parte do Consumismo mais hediondo e que escraviza o Povo. Aquela ação de Ética pregada por Zeca Afonso na caminhada anti-fascista passou a ser, diante da abjeta atitude da classe média e dos artistas engajados, a mesma ação de Lobão, porque é preciso conscientizar a Classe a que pertencemos para ganharmos o Povo para a luta da melhoria da Vida, da Liberdade. Isolado, mas consciente e ativamente anti-colonialista, Lobão trabalha a sua Obra discográfica e social nos circuitos alternativos, como bancas de jornais, feiras, web, rádios e imprensa comunitária. Tudo aquilo que, em princípio, o ´pop-roqueiro´ não pode ser, ele é e prova que pode e sabe sobreviver enquanto marginal ao Sistema Consumista, além de ter consigo o apoio significativo da juventude mais atenta ao quotidiano da problemática dita ´brasileira´. Mas isso faz com que a Indústria Fonográfica o persiga ainda mais, a ponto de o cantor Zeca Baleiro sair a público, no jornal ´O Estado de S. Paulo´, de 02.08.2002, acusando

[...] a gravadora Universal Music de querer "desmoralizar"
o músico Lobão, ao exigir publicamente que ele pague direitos autorais
pelo uso de uma música de Baleiro no álbum A Vida É Bela (1999).
"O cachê que recebi por minha participação é impagável –
a satisfação de fazer parte de
um disco histórico e belo", afirmou Baleiro.
"Se a indústria fonográfica reclama do projeto de lei
que a trata, presumidamente, como fraudadora, que aja então com
clara transparência, que conquiste a credibilidade pública
com a lisura e evite a prática de golpes
baixos como esse", acrescentou. Zeca é contratado da gravadora [...]

O que engrandeceu, pelo reconhecimento público, o caminho ético que Lobão trilha isolado, mas contando com a solidariedade pontual da Classe artística menos ´vendida´. Na maioria esmagadora, os chamados “artistas populares” são os vinculados à Indústria Fonográfica e que, a partir dela, emprestam a sua imagem pública para enfeitar a propaganda de produtos industriais das grandes empresas locais e multinacionais; no entanto, Artista Popular é aquela pessoa que cria e recria a ´batida´ poética e musical que nas comunidades, sendo que alguma dessa produção verdadeiramente comunitária só chega ao grande público quando artistas integrados no Espírito das Tradições neles se inspiram e com eles fazem parcerias. Quando a Classe Artística, notabilizada mais pelas chamadas publicitárias do que pelo trabalho, se vende ao vender outros produtos, ela passa a estar com o Consumismo, deixa de ser Povo, e aí, ao falar de Povo/Popular é já uma caricatura da pessoa que iniciou a carreira artística no balanço tradicional popular... Nesse aspecto é que Zeca Afonso e Lobão, no enquadramento das suas circunstâncias culturais e geográficas, mais se parecem...

Um dos trabalhos fonográficos que mais gosto de Lobão é “Noite”, no qual uma ´base´ Tecno agrega todas as batidas do Pop-Rock ao Samba passando pela Bossa-Nova, e é um trabalho representativo da caminhada artística e cultural desse genial brasileiro do Rio de Janeiro. O seu suporte criativo é um Pensamento conectado com as realidades do Quotidiano que passa pelas suas próprias realidades de Artista consciente e livre.



Entre Zeca Afonso e Lobão existem diferenças estéticas e ideológicas, mas, nos respectivos países, ambos marcaram/marcam uma presença política e cultural de transgressão aos cânones do Poder estabelecido – o político, o religioso e o econômico.

Vivemos o Ano 5 do Séc. 21 e eu sou uma mulher, professora e artista visual, que acabou de conhecer um personagem-marco da História recente de Portugal, e que se confronta com um campo de ação, também artístico e também político, de um personagem-marco da História contemporânea do Brasil. O que encontrei? Um ponto comum onde a Transgressão é o motor libertador e a chave para a Resistência, ou, como me lembrou Céline Abdullah, “...a linguagem da força moral contra todos os colonialismos...”.

Zeca Afonso é profundamente agressivo ao cantar “O povo é quem mais ordena...”, e leio e ouço a mesma agressividade no canto de Lobão em plena obscenidade social e política: “Porque sou bem pretinho/ Pensam que sou marginal [...]/ Fui metido a bam-bam-bam/ Católico apostólico soterrado no divã/ Preto vota ´em branco´ / Contestando a razão/ A gente é branco e preto/ Preto e branco... É tudo irmão”. Tudo pela Ruptura. Tudo para que o Povo se perceba Gente e ganhe forças para conquistar o espaço que meia dúzia usurpa em nome de deuses e/ou de mitos familiares grafitados na memória falsa dos manuais escolares. Sem se transgredir não se derrubam muros nem fronteiras, sem se transgredir não se conquista a Liberdade.
Falar de Zeca Afonso e de Lobão não é, propriamente, falar de uma roda de viola – também é, mas... –, é mais falar de atos contemporâneos. Em rodas de artistas e intelectuais já ouvi que “...o Lobão é resto da produção de Cultura Consumista. Ele foi feito pelo Sistema e agora cospe em quem lhe deu nome comercial!”. O que é uma observação completamente equivocada. E mesmo que assim fosse, todas as pessoas têm o direito de arrepiar caminho quando a vivência quotidiana e profissional não lhe faz bem, porque aprendemos da Vida dando as duas faces para bater. Ora, seria o mesmo que dizer: “o fascista Salazar deixou crescer o Zeca Afonso porque sabia que o próprio Sistema não o absorvia e lhe tolhia a carreira. O que faz falta a alguns críticos de Música é serem, de fato, o-Crítico com conhecimento de causa... Entre os dois nem faço comparações, porque cada um tem a sua época/circunstância. A grande Lição social, artística, e política de Zeca Afonso e de Lobão, é terem conseguido construir linguagens próprias e contemporâneas e nelas mostrarem ao Povo, o que fala português em Portugal e no Brasil, como na África, que a grandeza da Humanidade está em ser vivida na plenitude da Liberdade... transgredindo, transgredindo sempre...!


Mariana d´Almeida y Piñon
Professora de Artes Visuais
São Paulo / SP – Br, 2005.


Notas

MACEDO, J. C. [poeta e ensaísta] – “Zeca Afonso, um anarquista no contra-ponto do capitalismo”, art., Lisboa-Pt, 1974. [Do arquivo de Johanne Liffey.]
CASTRO, Mário G. de [professor e foto-jornalista] – “Na toca do anti-colonialismo com Lobão, ou a certeza de que a Anarquia é a solução para a Paz”, art., Campinas/SP – Br, 2003.
BARCELLOS, João [escritor, jornalista cultural] – “Ruptura: ou a Anarquia filosófica cria uma nova identidade humana, ou o Colonialismo fará de nós simples peças para compra e venda”, ensaio-palestra, Web / TN Comunic & Jeroglífo, Buenos Aires – Arg., 1998.
ABDULLAH, Céline [bioquímica] – “Orientação Para Uma Jovem Brasileira Que Adora Ser Livre”, carta, São Paulo / SP – Br, 2004.
DELGADO, Humberto [1906-1965] – “[...] Militar, opositor do regime colonial salazarista, foi assassinado pela polícia política [PIDE] numa emboscada armada na Espanha, em Villanuena del Fresno, perto de Badajoz, onde também foi morta a sua secretária, a brasileira Arajaryr Moreira Campos. Humberto Delgado reuniu em torno de si as esperanças de Democracia que o Povo Português acalentava contra o sufoco social e econômico instalado por Salazar, com apoio tácito e visível da Igreja Católica. Ao ser questionado sobre Salazar, caso fosse eleito Presidente da República, o general declarou Obviamente, demito-o!... A desassombrada declaração incendiou Portugal e, muito especialmente, a juventude intelectual e militar. O seu assassinato aprofundou ainda mais o sentimento de medo em que Portugal já vivia, e do qual só se libertaria 9 anos depois, com o golpe militar de ´25 de Abril´...” [BARCELLOS, João – in “O Terrorismo Do Estado Novo Salazarista Sob As Bençãos Do Catolicismo”, art., Rio de Janeiro / Br, 1990].
FIRMINO, Carlos [professor] – “Os Medos/Erros Da Classe Média Que Fizeram Mais Ricas As Elites Fascistas Do Brasil”, ensaio, Campinas/SP – Br, 1997.

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