23 de março de 2006

Poemas a José Afonso

Idílio com a morte
Fátima Maldonado

Para o José Afonso

I

Após duelo hórrido
tenaz o cavaleiro
jaz inerte
mas não está vencido,
melhor dizendo perdeu os estribos
e vai sem pedais em direcção à morte.
Quem sabe, talvez ela o console,
lhe dê afinal o que nenhuma mulher,
sereia, sílfide ou cadela
logrou entregar,
abrir, envolver ou mostrar.
Nunca viu horizonte
onde pudesse à sombra do pinhal descansar,
o escudo recebendo a carícia do sol,
nem no regaço a dama do licórnio o acolheu
ou conheceu a partida das lágrimas
e mesmo assim o cavaleiro não esquece
feras letras, vocábulos no zénite
que a vida lhe ensinou a desdenhar.
Quando for o regresso
mais sábio, mais seg'uro e mais audaz
talvez então se resigne ao amor.

II

Pediu o cavaleiro
ao homem que maneja
o ferro
o seu vocabulário.
Pediu-lhe emprestadas
as formas das censuras,
o fia gelo, a vergôntea, o montante,
a pólvora que rodeia
os vocábulos
e fez delas coroas de espinhos.


Salutación á José Afonso
Atahualpa Yupanqui 9 Marzo 1985

Ya no estoy en tu piedra. hermano Afonso.
Como un viento de mi pampa
/legué /leno de cantos enamorados y salvages.
Aqui quedan algunos, cerca de tus olivos.
junto a los rios, trepando ca/les
y caminos duros. Ouros como los hombres y
las cosas.
Como no amar la tierra, compaflero?
Si en el aroma fuerte de la hierba
te saluda en la tarde la paloma escondida.
La mano deI amigo es tu estandarte.
Tan hondo como el mar es el amor deI pueblo.
Donde quiera que vayas, la poesia amanece
como una novia inacabable y tierna.
A mi América vuelvo, José Afonso.
Te abrazo. hermano, y aI combate vamos.
Somos hechos de lúz y polvareda.



José Afonso

Hélia Correia

Em louvor da desordem.
Exaltando
o vinho e os seus fermentos.
Em louvor dos motivos
e em louvor
da pura insensatez,
nos sentaremos nós ouvindo este homem,
atravessados pelo seu galope.

Como a uma criança, aconchegamos tudo aquilo que ele amou.
Tudo o que é térreo
e sujo
e sorridente,
e oferece o rosto
de chapão à luz.
Coisas que nos deslizam sob a pele disparando calor.
Regendo as linhas
fundamentais da vida.

Há um nó de caminhos onde este homem
se pôs a esconder pólvora e sementes,
calendários rurais.
Dele não pode falar-se sem que se ouça
a espantosa alegria.
Sem que de novo bata pelos sítios
o eco de um tambor.

É bem possível
que a canção vele, oculta nas cidades.
Que se incline nos nossos pensamentos
como um espelho lunar,
duro e pacífico.
E sob o seu olhar nos desloquemos
por entre a turbulência.
E dela venha um íntimo sentido
e o seu ardor nos saiba
conduzir.

Pois deste homem ficou o ofício.
Os meios.
Sabemos de que modo se levantam
as pedras sobre as pedras.
Sabemos de que modo
as aguçar.

Existe ainda
um cordão de linguagens.
Vibra teimosamente o ar, movido por sopros
e até mesmo
por fadigas.
E a sua voz empurra e alimenta essas circulações.
É o vento do sol
que permanece.


Homenagem a José Afonso
Luís Serrano

Esta voz
é o que resta dum grito
ou dum silêncio
ou dum pranto desabitado
voz solitária e branca
onde uma água desprevenida
lentamente anoitece
a memória das coisas
está nessa luz desamparada
que respira
e também os filhos esses
tão incertos
delicados frutos
por quem perseguimos
lágrimas e risos


Novos cruzados
Lembrando Luiza Neto Jorge e as suas deambulações em Faro com A. Barahona, Zeca, Bronze e Pité
Luiza Neto Jorge

Sequiosos descem,
seus corpos de esponja
a rolar na treva,
iates rompendo
à babugem de água,
caravanas caras
em fossados por
rochedos e hortas,
sedentos recolhem
cisternas, piscinas
sob o seu pendão,
e saqueiam, sangram
consagrados à
salvação do corpo
estes cruzados!


Para José Afonso
António Ramos Rosa

O canto que se erguia
na tua voz de vento
era de sangue e oiro
e um astro insubmisso
que era menino e homem
fulgurava nas águas
entre fogos silvestres.
Cantavas para todos
os acordes da terra,
os obscuros gritos
e os delírios e as fúrias
de uma revolta justa
contra eternos vampiros.
Que imensa a aventura
da luz por entre as sombras!
A vida convertia-se
num rio incandescente
e num prodígio branco
o canto sobre os barcos!
E o desejo tão fundo
centrava-se num ponto
em que atingia o uno
e a claridade intacta.
O canto era carícia
para uma ferida extrema
que era de todos nós
na angústia insustentável.
Mas ressurgia dela
a mais fina energia
ressuscitando o ser
em plenitude de água
e de um fogo amoroso.
É já manhã cantor
e o teu canto não cessa
onde não há a morte
e o coração começa.


Quando a luz fechou os olhos
Janita Salomé

Quando a luz fechou os olhos
Amansou a terra um ar morno
De cinza, doce, de cores desmaiadas
Pelos perfumes vindos no bafo da noite

Do ramo mais fino do silêncio
Soou o rouxinol num canto dorido
De seda e ondas, que soltava em cada nota
Um fio delicado de fumo como fogo-fátuo

Teceu um véu e ali se guardou
De volta às entranhas da vida
Basta um sopro mágico, liberto,
Para que a luz acorde a cantar

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