10 de maio de 2006

E quanto ao poder, que vá para a puta que o pariu!

Os promotores da festa de homenagem a José Afonso, que decorreu dias 24 e 25 de Fevereiro 2006 na cidade de Guimarães, convidaram o Pe. Mário para participar, na tarde de 25, numa conferência/debate, juntamente com os companheiros Alípio de Freitas, Octávio Fonseca e Viriato Teles. A moderação coube ao jornalista Rui Pereira. A intervenção do Pe. Mário, a seguir à do amigão Alípio de Freitas, suscitou aplausos e certamente alguns dissabores, entre as muitas pessoas presentes no espaço do Café-Concerto, do Centro Cultural Vila Flor. Só os aplausos se manifestaram na ocasião. É o texto dessa intervenção que o Jornal Fraternizar aqui partilha. Com o pedido de que não nos deixemos impressionar com a dureza profética da expressão que seleccionamos para título. Vejam nela a força des-sacralizadora da Teologia jesuânica que não suporta a Idolatria do Poder, por mais que ela se vista de Cúria Romana, paços episcopais, templos e catedrais, ou palácios de Governo, ou de títulos pseudo-democráticos que só servem para esconder privilégios que deveriam envergonhar-nos a todas, todos.

É uma responsabilidade enorme dissertar sobre José Afonso, o Músico, o Poeta, o Homem! Mas pediram-me para o fazer. E eu fui incapaz de dizer que não. A José Afonso nunca se pode dizer que não! Ele sempre se entregou por inteiro, sobretudo, aos Sem-Nada; sempre disse sim aos convites para estar presente com a sua Voz, os seus Poemas, a sua Música e com todo o seu Ser nas Causas dos que, no seu tempo, nunca teriam tido entrada em locais como este Centro Cultural Vila Flor, aqui em Guimarães. Por mim, acho que nunca mais seria digno do seu carinho, nem do seu afecto, se me tivesse recusado a estar aqui inteiro. Por isso, estou. Mas, como escrevo no texto que preparei para o livro ZECA SEMPRE, em boa hora lançado estes dias pela Arca das Letras, do Porto, estou aqui com lágrimas. Porque, a esta distância, nós que aqui estamos já deixamos matar Abril que ele preparou e anunciou como um dos seus maiores precursores (e não só com a sua “Grândola, vila morena”); e que, depois de Abril chegar, ajudou a consolidar como poucos, inclusive, mais, muito mais do que os próprios Capitães de Abril. Ou as Canções de José Afonso não fossem todas uma arma que, ao contrário das armas dos militares, põem de pé e em postura de combate as multidões daqueles que hoje voltamos a consentir que vivam por aí condenados a ser uns Ninguém, como se, alguma vez, a Humanidade pudesse ser, sem eles ao nosso lado e sem nós ao lado deles; sem eles sentados à mesma Mesa que nós continuamos a ter todos os dias mais ou menos abundante e bem regada com vinhos de qualidade; e sem eles ao nosso lado no posto de trabalho, de que ainda usufruímos; ou sem eles ao nosso lado na Universidade que ainda frequentamos como alunos ou como professores.
Escrevi há tempos (o texto integral encontra-se no meu novo livro Na Companhia de Jesus e de Ateus. Livro dos Actos Século XXI (edição de Autor), que isto, entenda-se, Portugal, não é um país. É um ninho de víboras! E a verdade é que já nem os (dos Partidos) da Esquerda se aproveitam. Deram-nos a provar as iguarias dos privilégios, admitiram-nos no clube dos endinheirados, nem que seja a troco de empréstimos bancários ou de cartões de crédito, e já não queremos saber dos proletários, muito menos, dos lumpen-proletários para nada. As democracias burguesas e representativas, como as que temos nos países da Europa e do Ocidente, também produzem os seus proletários e os seus lumpen-proletários. Hoje, eles são mais do que muitos, um autêntico exército que poderia derrubar o Sistema e fazer ir pelos ares as Multinacionais da nossa desgraça. O problema é que agora já não há José(s) Afonso(s) que, como a toupeira ou como a formiga, ou como o andarilho que não tem onde reclinar a cabeça, se metam à estrada, se façam próximos deles, lhes ganhem a confiança, se relacionem fraternalmente com eles e mantenham com eles um continuado e fecundo diálogo maiêutico, ao jeito de Sócrates (o famoso filósofo da Grécia, não, evidentemente, o Sócrates de Portugal que hoje nos caiu em sorte como primeiro-ministro), até fazerem despertar dentro deles a consciência crítica, a consciência da sua própria dignidade, assim como o respeito e o amor por si próprios. Vai daí, de exército libertador que poderiam ser, os novos proletários e lumpen-proletários da Democracia burguesa que nos estupidifica, acabam por ser carne para canhão, a troco de nada, comidos pelo Desemprego e pela Droga, destroçados pelas Novelas rascas em série, pela Senhora de Fátima e pelo Futebol, já não dos clubes, como outrora, mas das empresas SAD, cotadas em Bolsa…
Digo-o com lágrimas, daquelas que se derramam na alma e nos deixam em cólera: Já nem os (dos Partidos) da Esquerda se aproveitam. Já nem os da Esquerda vivemos para derrubar o Poder, cada vez mais corrupto e fonte de corrupção e de idolatria. Pelo contrário, pelamo-nos todos, ou quase todos, por partilhar o Poder, nem que seja num confortável cargo de assessor ou de secretária de um escroque qualquer. Exagero? Podem pensar que sim, mas apenas porque ainda não batemos no fundo como milhares de companheiras, companheiros nossos já bateram. Porque, também graças a Abril, que José Afonso ajudou a fazer acontecer e consolidar, nos seus primeiros tempos, ainda somos daquelas, daqueles que pudemos singrar na vida, fazer carreira, instalarmo-nos vitaliciamente numa qualquer direcção de um qualquer sindicato ou duma qualquer central sindical, ou no núcleo duro dum qualquer partido político de Esquerda, ou numa cadeira de deputado em Lisboa ou em Bruxelas (passam sucessivos presidentes da República, com mandatos de dez anos, e eles permanecem sempre os mesmos como os papas da Igreja de Roma). Ou, dito por outras palavras: porque não somos o mexilhão que sempre se lixa, particularmente, quando as crises generalizadas batem à porta das nações…
José Afonso. Não bastam homenagens destas. Os revolucionários como ele não são para homenagear. Todos eles estão-se borrifando, ou – perdoem-me a crueza da linguagem – estão-se cagando para as nossas homenagens! Os revolucionários, como José Afonso – e todo o revolucionário é Músico, Poeta/Profeta e Homem de corpo inteiro e de espinha dorsal erecta – não são honrados com homenagens. A única homenagem que honra os revolucionários como José Afonso é eles poderem ver, lá onde estiverem, que outros homens, outras mulheres estão a prosseguir as suas causas, a correr os mesmos riscos, a protagonizar os mesmos combates duélicos, a gastar as suas vidas longe dos palácios e confundidos com os da base da pirâmide social. Permanentemente, mergulhados na fecundidade do Deserto e da Montanha.
Momentos como este que hoje estamos aqui a viver também são úteis, mas apenas quando, entre uma sessão de homenagem e outra sessão de homenagem – nos 365 dias do ano, de cada ano – estamos efectivamente metidos até aos ossos e até ao limite, naqueles combates e naquelas causas que foram a razão de ser da vida de José Afonso. Se não for assim, deixem-me que lhes diga que estas homenagens não passam de Missas ateias, com tudo de inócuo e de iníquo e de feira de vaidades que as Missas católicas têm dentro dos templos. As quais eu, padre/presbítero que continuo a ser da Igreja do Porto, felizmente já não frequento há muitos anos.
A Memória de José Afonso, Músico, Poeta, Homem, é como a de Jesus de Nazaré, politicamente subversiva e perigosa. Celebrá-la, só tem sentido se for para suscitar mulheres, homens politicamente subversivos e perigosos, em cada hoje e aqui, também nestes que são os nossos hoje e aqui.
Estou desenquadrado nesta minha reflexão? Não creio! Porque uma coisa eu aprendo com Jesus, o de Nazaré, que acabou crucificado: “Pelos frutos, se conhece a árvore”. Portanto, também as festas de homenagem a José Afonso. Se elas não servem para despertar/ressuscitar em cada uma, cada um de nós, o José Afonso que a Democracia burguesa e representativa já conseguiu adormecer ou mesmo matar em nós, então para que servem? Por mais homenagens que lhe façamos, os senhores dos privilégios continuarão aí a explorar à vontade, a desempregar à vontade, a matar à vontade. Porventura, até ao som da música e da voz do nosso querido José Afonso! Só que então, as homenagens que promovemos tornam-se um insulto. Um vómito. E José Afonso terá todo o direito de nos dizer: "Cobre-te, Canalha / com a Mortalha / que hoje o Rei vai nu!" Só que, neste caso, o rei que vai nu somos nós!...
Concluo com uma lembrança viva: Num daqueles concertos de José Afonso, realizados nas condições mais incríveis em que ele quase sempre actuou, vivi com emoção o concerto que ele deu (digo deu, não vendeu!) uma noite em Massarelos, no Porto, a convite da respectiva Comissão de Moradores. No final, quando fui junto dele pelo abraço fraterno, José Afonso diz-me: Li o teu livrinho Maria de Nazaré (edição Afrontamento, há muito esgotado) e estou empenhado em fazer um LP com poemas que hei-de escrever inspirado na mensagem que o livro transmite. Olhei-o estupefacto. E comovi-me até às lágrimas de alegria. E José Afonso acrescentou: Aquela Maria de Nazaré que canta um Deus que derruba os poderosos dos seus tronos e levanta os pequenos, despede de mãos vazias os ricos e enche de bens os esfomeados é uma Mulher revolucionária que eu quero cantar. Porque é uma Fé cristã assim como a dela que mudará o nosso mundo!
Infelizmente, a Doença não o deixou iniciar e muito menos realizar este Projecto. Haverá aqui, ou noutras zonas do país, quem seja hoje José Afonso e realize este Projecto? Concretamente, que seja capaz de associar no seu viver quotidiano Fé cristã jesuânica e Revolução? E que a cante?
Por mim, continuarei a ser o padre/presbítero pobre que desde o início do meu ministério decidi ser e é assim que quero viver até ao fim (presentemente, vivo da minha pequena reforma de jornalista que nem sequer chega aos 450 euros mensais); à semelhança de José Afonso que também viveu e morreu pobre. Prosseguirei como ele alegremente nas Margens, como em Deserto e em Montanha, longe dos Templos e dos Altares, o mesmo é dizer, longe do Poder e dos privilégios que o Poder concede a quem, em lugar de se lhe opor, se torna seu vassalo e servidor. Entre os mais pobres. Para que eles sejam donos dos próprios destinos. Quanto ao Poder que continuamente me/nos bate à porta com as suas seduções e mentiras, que vá para a Puta que o pariu!

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