Dossier do jornal EXPRESSO, sob o título "Portugal sem Abril" onde encontramos textos construídos à volta da suposição: "E se o 25 de Abril tivesse falhado?"
Eis um excerto do muito bom texto da Clara Ferreira ALves, "O 25 de Abril nunca existiu"
O assassínio de Zeca Afonso deixara o país em estado de choque, numa dor silenciosa interrompida por explosões de violência que a Junta soterrava em terror, com a ajuda dos pides, atulhando as prisões.
Portugal sem Abril | Henrique Monteiro
Uma homenagem ao 25 de Abril é uma homenagem à liberdade. Não leva em conta os excessos cometidos, as hesitações e os fracassos - seja qual for a vertente de análise, o valor da liberdade sobrepõe-se aos acidentes de percurso. Que, apesar de importantes para a História, em especial pelas lições que deles tiramos, se tornam irrelevantes quando se trata de considerar que vivemos em democracia há um quarto de século - sobretudo depois da normalização do 25 de Novembro (ou da «pureza», como lhe chamou o próprio Otelo Saraiva de Carvalho na entrevista publicada na última edição).
As homenagens, por bem intencionadas que sejam, correm, porém, o risco de se tornar banais - mera sucessão de ritos, palavras e histórias inexoravelmente gastas pelo tempo. Para um jovem de hoje, qual o real significado das palavras ditadura, censura, repressão, clandestino, desertor e tantas outras que foram vocabulário corrente há 25 anos?
A redacção do EXPRESSO pensou, por isso, contar outra história: e se o 25 de Abril tivesse falhado?, e se hoje vivêssemos sem liberdade?, e se nos mantivéssemos no 24 de Abril (data que no imaginário representa os 48 anos do Estado Novo e sobre a qual passam hoje 25 anos)?
A ideia tem o seu quê de absurdo, tanto mais porque o regime anterior estava apodrecido e as guerras em África não eram sustentáveis. E porque foi precisamente a revolução portuguesa que inaugurou o que os historiadores consideram a terceira vaga de democratização: a Grécia e a Espanha, países que acompanhavam a nossa perversão totalitária, democratizaram-se; a América Latina, viveiro de ditadores, aderiu à democracia; a URSS e os países do Leste da Europa abandonaram os seus governos concentracionários.
Apesar de tudo, decidimos fazer o exercício de imaginação. Ficcionámos um Portugal sem liberdade, isolado da Europa e por consequência paupérrimo, retrógrado, sem qualidade de vida, sem desenvolvimento, sem orgulho, ostracizado - a mais provável consequência de uma ditadura que, estando em vigor há 48 anos, se prolongaria por mais 25.
O texto de Clara Ferreira Alves pretende transmitir esse retrato de um Portugal absurdo e ridículo. E é pelo contraste da ficção com o que é hoje o Portugal verdadeiro que prestamos a devida homenagem a todos aqueles que, desde o dia 25 de Abril de 1974, contribuíram para a democracia, o desenvolvimento e o prestígio internacional de que nos orgulhamos.
Em contraponto com esta fantasia, publicamos um artigo do historiador prof. António Costa Pinto que explica as razões profundas da liberdade devolvida a Portugal e as vicissitudes da transição para a democracia.
Ao longo das páginas seguintes, encontramos ainda depoimentos de diversas personalidades nacionais e estrangeiras, que comentam o cenário ficcionado de que partimos, bem como reproduções de diversas obras inéditas de artistas plásticos que quiseram igualmente homenagear a revolução dos cravos. Do mesmo modo, todas as secções habituais da Revista remetem para os tempos da censura, da falta de liberdade e de um gosto antiquado. Enfim, de um país cinzento, onde os mais velhos temeram viver toda a vida e que os mais novos felizmente não conheceram. Um país sem alma nem chama, feito de preconceitos, de força bruta e de sentimentos reprimidos. Numa palavra, um Portugal sem Abril.
Podem encontrar o dossier em: http://segundasedicoes.expresso.clix.pt/dossiers/
25Abril/primeira/default.asp?dpage=38
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