17 de julho de 2006

Zeca: Encantava cantando - Natália Correia

Encontrámo-nos no mar alto. Ambos vindos de África. Eu, de An­gola onde, com o pretexto que me calhava ao gosto, de fluir feitiços africanos escapados à ganância evangelizadora dos missionários, ia em missão de tratos conspiratórios que a Pide farejava no cerco das andanças. O Zeca, de Mocambique, onde a sua voz de gorgolejos de água fora com a Tuna Académica, humedecedor com toadas saudo­sas de Coimbra cora­ções endurecidos pela faina de enriquecer a ex­pensas do indigena. O encontro foi de im­pacto mágico. Noctiva­go, por conseguinte. Enlevos, sonhos e indig­nação contra a mordaça com bota de elástico, exaltações vividas noite fora por um pequeno grupo que só recolhia ao camarote quando o raiar da manhã aureoleava o ritual da baldeação que nos expulsava do convés.
Recordo-o ali entre um apaixonado estar presente e um despren­dimento de não estar. Era belo. Mas o pudor de o ser ornava-lhe a cabeça de grego deslei­xado. Parecia que se envorgonhava da beleza do seu rosto talhado pela medida ouro. A alma, essa porém expu­nha-se quando nos fazia ouvir o correr do seu sangue para a Poesia.
A sua demanda de cavaleiro da Causa que os fantoches do viver por viver, dizem ser coisa perdida.
Em Lisboa chega­ram-me os seus versos com uma pergunta. Ele queria saber se em minha opinião aquilo era publicável. Perplexa in­terroguei-me: mas então aquele génio da poesia cantabile não sabia que os fados o tinham predestinado para despertar a adormecida origem do nosso lirismo na recomposição das núpcias do canto e do poema?! Foi o que lhe respondi por outras palavras: Publicáveis? Não. Melhor do que isso. Cantáveis.
E de que maneira o foram, fei­tos sustento do anseio revolucio­nário que, se não for impulso da poética da libertação acaba sem­pre no bolso dos abutres dos Termidores.
Recordo-o ainda nas ferventes noites alentejanas em que envol­vidos no coral enluarado dos homens da planicie, emparelhá­vamos em estampidos de revolta cantada e recitada, o Zeca, o Adriano e poetas do claro grito da indignação, entre os quais eu, como fêmea guerrilheira da palavra libertária fruia o piropo alentejano de ai filha de um real cabrão! que a urbani­dade ensossa toma por ofensa E nessa maré de vozes concertadas no esconjuro dos vampiros boiava a voz andrógina do Zeca, como uma es­treia de cantos acesa pelo que sufocadamente remanesce no coração do povo das antigas idades em que todos eram irmãos no reino da Mãe Natureza.
Alinhei imagens que a minha memória selec­tiva elege das muitas que guarda de um con­vívio persistentemente afectivo apesar de entre­cortado pela sua errân­cia residencial desde Coimbra até fixar-se em Setúbal.
Foi-me tremendo sa­ber que as Parcas lhe teciam o fim. Ciosos dos que amam, os deuses en­comendaram-lhes o te­cer fatal. Porque o Zeca era jovem. Não o era nos anos? Sei lá com que idade morreu. A úni­ca juventude que me des­lumbra é a que tem o dom de encantar. E ele encantava cantando.
Porque cantar e encan­tar são uma só coisa na arte de fazer ascender os corações em que o canto sortilegamente se derrama, àquele ponto espiritual do sentimento de todos serem Um.

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