6 de dezembro de 2006

Hoje na Associação 25 de Abril em Lisboa

1 Comment:

Zénite disse...

É bom passar por aqui e ouvir o nosso saudoso Zeca Afonso. E também é bom saber que há cidadãos que não dormem e se revoltam.
Bem-hajam!

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Pássaros Cruéis


Um fluxo de dólares e de sangue
jorrando sobre a Mesopotâmia.
Um sino de fogo embutido nos umbrais do deserto.
E a fúria insana.
O crude sobre o equinócio
ensaiando um concerto de morte.


E há falcões.
Falcões que dançam e pairam sobre os soluços
do amanhecer sangrento.
Talvez abutres.


Fogo e cinzas calcinantes,
estilhaços, gritos, pedaços de argila.
A morte galopando sobre as cidades.


Breve, um talismã tomba sobre o asfalto.
Um turbante esvoaça, branco,
sob o luar negro de fumo.
Calou-se a flauta de vento
que flébil gemia sob a tamareira.
Eternos e piedosos, a Lua e Vénus
velando a morte.


Cessaram os sorrisos no país de Aladino.
Sangue e lágrimas, apenas.
Um sem-fim de covas, e cemitérios, e morte.
A face lúgubre e sombria do fim.


Onde estão as crianças
acordadas no seu sonho peregrino?
Onde a civilização das areias?
Onde Gilgamesh, o herói de todas as batalhas?
Onde Babilónia, a dos Jardins Suspensos?
Onde o berço da civilização? Onde a justiça?
Onde as palavras que brotaram da argila?
Onde a água de sonho do Tigre?
Onde o Sol, onde a Lua?
Onde a estrela levantina?
Onde os pássaros, onde a brisa?
Onde as chispas de oiro e prata
das águas de espelhos do Eufrates
agora tintas de sangue?
Onde a mulher que embalava no berço
o seu menino de olhos de mel?
Onde o menino?
Onde a Babel?


A coberto dos ventos de opróbrio e azeviche,
nabucodonosores de barro
tombam no resvalo da pedra de Sísifo
enquanto trepidantes de náusea
os cavalos de fogo do Apocalipse
migram para o frio
na companhia dos pássaros cruéis.


O verbo, distorcido, aguarda receoso
a frieza invencível da razão clara.
Viscoso e mole, o mutismo dos homens
flanqueia a gelatina estática do caos.
Morre, a pouco e pouco, a cidade de Sherazade.