17 de março de 2007

"Zeca" ou a cultura dos mitos

Uma semana de atraso não é nada perante o significado de uma efeméride.
Há sete dias atrás este país lembrou-se, vagamente embora (se descontarmos a comunicação social em geral e alguns círculos políticos mais “neo revolucionários”) que passaram 20 anos após a morte de José Afonso.
Ainda? – perguntará alguém…
Ora acontece que José Afonso é no meu modesto ponto de vista o exemplo de como a cultura dos mitos se mantém viva e actuante.
A palavra “mito” não tem aqui qualquer intuito pejorativo, bem pelo contrário.
Vejamos porém como somos dados às nostalgias da moda conforme convém aos diferentes tipos de nostálgicos que por aí abundam.
A grande nostalgia nacional continua a ser D. Sebastião.
Atrevo-me a pensar que se não tem sido Alcácer Quibir Portugal seria hoje uma grande potencia, temida pelos quatro cantos do Planeta, e a ditar leis para tudo o que é sítio.
A fazer fé no “mito”, D. Sebastião seria decerto um génio da governação, a única personalidade capaz de levar este país pelos caminhos do desenvolvimento e da bem aventurança.
Será porque era um rei menino?
E isso terá alguma coisa a ver com o menino Jesus?
É que pouco tempo depois da desgraça de Alcácer Quibir vieram por aí os Filipes, e se a coisa com Espanha já não era famosa, a partir daí toldou-se completamente.
O nosso grande azar afinal é o nevoeiro. Ele deveria voltar numa manhã de nevoeiro mas, pelo visto, o nevoeiro que temos (ai os nevoeiros que por aí andam…) não é de grande qualidade, nem tem a dose de nobreza necessária para nos devolver o nosso salvador.
Paciência.
O que ele não poderia ter feito pela Pátria?
E o que seria ela hoje?
Depois há os “mitos” artísticos, desportivos, literários…
Todos eles fizeram, ou estiveram à beira de fazer qualquer coisa de grandioso pela Pátria e, como normalmente acontece neste recanto, só após a sua morte o país se ergueu em cânticos de louvor e lágrimas de saudade, enaltecendo-lhes tudo o que fosse qualidade ou virtude, e não se coibindo até de lhes atribuir dotes de visionários ou de seres sobredotados.
Um exemplo aparentemente inofensivo é o Rei Dom Carlos.
Barbaramente assassinado à frente do povo tornou-se um mito.
Outro génio da governação que se perdeu precocemente e impediu Portugal de avançar pelos caminhos da fortuna.
Pois é…há sempre um azar qualquer, um acaso que, quando tudo parecia bem encaminhado, se atravessa implacável no nosso caminho para a bem aventurança.
O pior é que só deram por isso depois de o Rei ter sido assassinado.
Memória curta?
Então, e os amores de Pedro e Inês?
Que outra mulher foi e é ainda tão cantada em nome do amor?
E que importância tem ser o amor clandestino de um Príncipe, depois Rei?
Bem vistas as coisas não deve ter importância nenhuma. A este respeito basta ver o que vai por esse mundo nos dias de hoje quanto aos amores das mais ilustres figuras das actuais monarquias.
Das Repúblicas nem vale a pena falar. São Repúblicas e está tudo dito.
O mais significativo e determinante é o modo como Inês foi barbaramente assassinada.
Outra vez a desgraça a estragar os planos da grandeza pátria e a servir de mote à explicação do nosso infortúnio.
Mas tudo isto veio a partir da memória de José Afonso.
Será que fez ou esteve à beira de fazer algo de grandioso pela Pátria?
A meu ver não, mas esteve à beira de ser “usado” em nome dela.
Pertenço a uma geração que cresceu a ouvir, algumas vezes clandestinamente, as suas baladas e cantigas.
E digo desde já que sempre admirei o génio artístico de José Afonso. A utilização do petit nom Zeca, a pretexto de ser um sinal de proximidade com ele, retira-lhe a dose de respeito que a sua evocação merece.
Mas é ou não um mito?
Em minha opinião é, mas no sentido mais positivo que a palavra “mito” pode conter.
O que julgo ser de realçar em José Afonso, para além do seu lado artístico propriamente dito, é a sua pureza de ideais. Utópicos? Talvez. Mas seguramente convictos e desprovidos de qualquer atitude interesseira, bem ao contrário de alguns que hoje o enaltecem, e de muitos que do seu génio poético e musical se aproveitaram.
O que se revela em José Afonso é uma permanente atitude de inconformismo e de estar sempre, ou quase sempre, ao contrário do mundo, defendendo uma ideia de liberdade que, vista aos olhos de hoje, não passa de utopia. Mas basta sentir a garra dos textos que cantava para se perceber que era uma utopia em que ele acreditava.

“A formiga no carreiro ia em sentido contrário…”

Muitos não irão gostar da comparação mas neste ponto recordo António Gedeão com um verso monumental:

“sempre que um homem sonha

O mundo pula e avança…”

Depois deu-se o caso de “Grândola Vila Morena” ter sido um dos sinais de avanço da chamada “revolução dos cravos”. Tanto bastou para que José Afonso entrasse, ainda que fugazmente, para a ribalta da revolução política.
Rapidamente ele próprio percebeu que o que se estava a passar pouco ou nada tinha a ver com os seus ideais. E concorde-se ou não com eles, há que enaltecer a coerência, e o progressivo afastamento que foi tendo de um novo grupo de usurpadores do poder que já se perfilava no terreno político.
Alguns ainda hoje por aí pululam e em vez de lhe elogiarem sobretudo os seus dotes de poeta do povo, usam-no como uma espécie de bandeira política que, atrevo-me a adivinhar, ele nunca quis ser.
Apesar de tudo a utopia é precisa, e bem vistas as coisas José Afonso foi sempre a criança que segurava entre as mãos a bola colorida de que António Gedeão falava.
São homens que escrevem assim que merecem ser a grandeza de um “mito”.

Henrique Dias Pedro

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