A evocação dos 20 anos do desaparecimento de José Afonso, soou-me como estranha. Qualquer coisa entre a hipocrisia e um consenso apodrecido à volta de um nome, de um criador.
Durante todo o dia da última sexta-feira, ouviram-se na rádio depoimentos de quase toda a gente que importa no mundo artístico, cultural e musical.
Uma parte dos depoentes elogiou o artista e o cidadão, evocando a sua condição de independente, de homem livre e de criador genial.
As canções do Zeca passaram numa rádio pública, que o ignora olimpicamente em todos os outros dias do ano, e as intervenções de elogio consensual seguiram-se de forma quase mecânica.
Discordo desta forma de evocação que, em nome de um unanimismo bacoco, pretende limar arestas desrespeitando a memória de quem, apesar de nunca ter pertencido a partido algum, sempre soube tomar partido pelos explorados e oprimidos.
Teria seguramente sido mais útil, dar a conhecer o criador pelas suas próprias palavras, explicando que o pintor cantado na canção onde a morte saiu a rua, não era uma figura de ficção, chamava-se José Dias Coelho e foi assassinado pela polícia política no princípio da década de 60 do século passado, que a Catarina que ceifeiras viram em vida
e que Baleizão viu morrer, não era produto da imaginação do poeta mas uma figura real, assassinada durante uma jornada de luta por melhores condições de vida nos campos.
José Afonso era um homem inconformado, solidário, lutador, que acreditava na possibilidade da sublime utopia de uma cidade de homens iguais e são estas características, aliadas a um raro génio criador, que faz dele um homem vivo por muitos anos que passem sobre o seu desaparecimento.
Vemos as capas de revistas que enaltecem as figuras dos banqueiros, e ouvimos o Zeca a cantar: anda ver o deus banqueiro/ que engana à hora e que rouba ao mês/ Há milhões no mundo inteiro/ O galinheiro é de dois ou três.
Ouvimos os discursos do primeiro-ministro e lembramo-nos da sátira contida na quadra: A palavra socialismo/ como está hoje mudada/ De colarinhos à Texas/ Sempre muito aperaltada.
Pressentimos as nossas gentes a encolher os ombros de desânimo, incapazes de lutar pela mudança e percebemos a actualidade do recado: O que faz falta é agitar a malta.
Lemos algumas declarações produzidas durante a campanha para o referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez e não podemos deixar de pensar nos versos finais da Arcebispíada: Igreja dos privilégios/ Mataste o Cristo a galope/ Também Franco, o assassino/ Mandou benzer o garrote.
O Zeca está sempre presente. Nas suas mensagens, na sua frontalidade, na sua forma de se afirmar sempre do mesmo lado. Querer fazer desta figura única, um ícone consensual pode ser um passo para silenciar tudo o que é importante na sua mensagem de apelo à coragem, à irreverência e ao espírito inconformista e inconformado.
Acabo como ele acabou uma canção editada em single em 1975 e posteriormente no álbum Enquanto há força: Não sei quem seja de acordo/ Como vamos terminar/ Vinho velho, vinho novo/ viva o Poder Popular.
Eduardo Luciano
Durante todo o dia da última sexta-feira, ouviram-se na rádio depoimentos de quase toda a gente que importa no mundo artístico, cultural e musical.
Uma parte dos depoentes elogiou o artista e o cidadão, evocando a sua condição de independente, de homem livre e de criador genial.
As canções do Zeca passaram numa rádio pública, que o ignora olimpicamente em todos os outros dias do ano, e as intervenções de elogio consensual seguiram-se de forma quase mecânica.
Discordo desta forma de evocação que, em nome de um unanimismo bacoco, pretende limar arestas desrespeitando a memória de quem, apesar de nunca ter pertencido a partido algum, sempre soube tomar partido pelos explorados e oprimidos.
Teria seguramente sido mais útil, dar a conhecer o criador pelas suas próprias palavras, explicando que o pintor cantado na canção onde a morte saiu a rua, não era uma figura de ficção, chamava-se José Dias Coelho e foi assassinado pela polícia política no princípio da década de 60 do século passado, que a Catarina que ceifeiras viram em vida
e que Baleizão viu morrer, não era produto da imaginação do poeta mas uma figura real, assassinada durante uma jornada de luta por melhores condições de vida nos campos.
José Afonso era um homem inconformado, solidário, lutador, que acreditava na possibilidade da sublime utopia de uma cidade de homens iguais e são estas características, aliadas a um raro génio criador, que faz dele um homem vivo por muitos anos que passem sobre o seu desaparecimento.
Vemos as capas de revistas que enaltecem as figuras dos banqueiros, e ouvimos o Zeca a cantar: anda ver o deus banqueiro/ que engana à hora e que rouba ao mês/ Há milhões no mundo inteiro/ O galinheiro é de dois ou três.
Ouvimos os discursos do primeiro-ministro e lembramo-nos da sátira contida na quadra: A palavra socialismo/ como está hoje mudada/ De colarinhos à Texas/ Sempre muito aperaltada.
Pressentimos as nossas gentes a encolher os ombros de desânimo, incapazes de lutar pela mudança e percebemos a actualidade do recado: O que faz falta é agitar a malta.
Lemos algumas declarações produzidas durante a campanha para o referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez e não podemos deixar de pensar nos versos finais da Arcebispíada: Igreja dos privilégios/ Mataste o Cristo a galope/ Também Franco, o assassino/ Mandou benzer o garrote.
O Zeca está sempre presente. Nas suas mensagens, na sua frontalidade, na sua forma de se afirmar sempre do mesmo lado. Querer fazer desta figura única, um ícone consensual pode ser um passo para silenciar tudo o que é importante na sua mensagem de apelo à coragem, à irreverência e ao espírito inconformista e inconformado.
Acabo como ele acabou uma canção editada em single em 1975 e posteriormente no álbum Enquanto há força: Não sei quem seja de acordo/ Como vamos terminar/ Vinho velho, vinho novo/ viva o Poder Popular.
Eduardo Luciano
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