24 de julho de 2007

O que ficou por contar depois do 25 de Abril

Neste primeiro andar da Rua da Betesga, onde tem casa o centenário Grémio Lisbonense, o fumo enovela-se nos cravos vermelhos. Em cima e em redor do palco, os figurantes ensaiam Grândola, Vila Morena. E tornam a ensaiar. Já poucos se lembram de todos os versos e da sequência da canção de José Afonso. Enquanto isso, Pedro (Gonçalo Waddington), o protagonista, volta a entrar na sala, duas, quatro, oito, muitas vezes. Não importa que a manhã vá avançada, só quando estiver tudo afinado se gritará "silêncio". "Acção." Sentado a um canto, Ivo Ferreira, o jovem realizador, parece satisfeito com o resultado ao fim de três ou quatro takes. "Cooorta! Obrigado."

Apesar de já haver muito material filmado em Lisboa, no Alentejo e no Sul de Espanha, esta é uma das cenas iniciais de Águas Mil, a segunda longa-metragem de Ivo Ferreira. A seu lado, fixo no monitor que mostra o que as câmaras vêem, está o realizador Joaquim Leitão. Vai desempenhar um curto papel. Sentada a uma mesa, a médica Isabel do Carmo também aguarda a sua deixa.

Com argumento de Ivo Ferreira, diálogos de José Maria Vieira Mendes e ajuda de Beatriz Batarda (na depuração dos guiões, casting e trabalho com os actores), Águas Mil é produzido pela Filmes do Tejo e tem um orçamento de 1,1 milhão de euros, 650 mil dos quais financiados pelo Instituto do Cinema e Audiovisual.

A sinopse pode resumir-se assim: Pedro, de 30 anos, parte para Espanha à procura do pai, Eduardo, que desapareceu quando tinha seis anos. Com algumas polaroids da época e as informações de dois camaradas (Cândido Ferreira e Juan Jesús Valverde), descobre que Eduardo foi membro de uma organização armada no pós-25 de Abril. A avó, Dona Inês (Adelaide João), vai atrás dele. Rita, a namorada (Joana Seixas), também. E Leonor, a mãe (Lídia Franco), acaba por ver-se obrigada a reconstituir essa viagem traumática.

À procura da identidade

"O maior desafio é tentar não cair em nada que seja explicativo ou lamechas", diz, durante a pausa para o almoço, o actor Gonçalo Waddington, convidado há seis meses. Ao confrontar-se com o passado do pai, Pedro, a personagem que interpreta, confronta-se com a sua identidade. "O meu pai, entretanto, morreu. Chamava-se Pedro", conta ao DN. Mas deixa claro que considera "errado" confundir afecto com criatividade.

Waddington (que protagonizou a série Até Amanhã Camaradas, dirigido por Joaquim Leitão), lamenta que entre as gerações mais jovens haja "profundo desconhecimento e desinteresse sobre o 25 de Abril". "A culpa é de todos e não é de ninguém."

Ivo Ferreira, que trabalha neste projecto desde 2001, concorda: "A geração dos meus pais não nos quis contar uma época da história." E só quebrando o "silêncio", afirma, se pode "perceber melhor o passado para viver melhor o presente".

Evitando o "discurso político" e separando as águas entre a luta armada de então e o terrorismo de hoje, o realizador diz que esta é "a história de uma geração que pergunta a outra o que aconteceu depois do 25 de Abril, confrontando-a com as vitórias e fracassos". Águas Mil "tem necessariamente um fundo político, mas é uma história de família, de amor, de morte. O pai terá fracassado na sua missão revolucionária". Este é , no fundo, um "trabalho sobre a identidade". E o seu autor gostaria de o estrear no próximo 25 de Abril.

PAULA LOBO Diário online

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