5 de julho de 2007

Pela memória, contra o esquecimento - Júlio Murraças

Para não deixar que, mesmo temporariamente, o Esquecimento enterre a Memória, trazemos à lem­brança sinais de um tempo em que, como recentemente recordou Manuel Alegre, havia o fascismo e havia a guerra, havia a guitarra do Portugal e do Paredes, as vozes do Zeca e do Adriano. E, a par da brutal repressão política havia também, acções, hoje felizmente consideradas inconcebíveis e risíveis, como aquela lembrada por Zeca Afonso numa entrevista ao "Sete" em 83, " em que os polícias anda­vam pelos jardins a ver quais os parzinhos enlaçados para lhes pedirem a identificação e os levarem para a prisão". Mas havia sempre alguém que resistía, alguém que dizia não, lembramos nós. E a cantiga era uma arma, que o regime fascista não queria deixar funcionar. Para tal, recorria aos meios repressivos que tinha, nos quais voluntáriamente se incluíam, entre outros governadores civis, presidentes de câmara e administradores de bairro. Sempre A Bem da Nação, todos cumpriam, servil e fervorosamente, o seu papel na máquina policial do Estado, denunciando entre si a ocorrência de actos tidos por subversivos, com o claro e propositado objectivo final de informar a polícia política -Pide/DGS-, e manter o regime. Neste sentido, e para exemplificar, em 17-4-70, reinava a ilusória "Primavera Marcelista", o governador civil de Lisboa transmitia ao administrador de bairro da Amadora o conteúdo de uma circular do gabinete do Ministro do Interior (Doc.l), no qual fazia saber que "As informações recebidas através da P.S.P. mostram que o Padre Fanhais desenvolve em todo o País uma actividade indesejável cantando baladas cujos temas não se compadecem com o clima rmJral que é preciso manter para assegurar a defesa do Ultramar e garantir a integridade da Pátria." Menos célere no cumprimento dos seus deveres foi o governador civil de Santarém, que enviou a mesma circular 4 dias depois para o presidente da câmara municipal da mesma cidade. A velocidades diferentes, o sistema repressivo funcionava. Contudo não impedia a multiplicação dos "espectáculos/convívios" que se iam realizando, "algumas vezes até clandestinos", sem sequer submeter as canções à obrigatória censura prévia, desafiando as regras impostas pela ditadura. Ultrapassado pela persistência e coragem dos seus opositores, o governo não desistia e aprefeiçoava os seus métodos: Afonso Marchueta, governador civil de Lisboa, em aditamento a anterior circular, enviava a transcrição de um ofício da Direcção dos Serviços de Espectáculos aos seus delegados concelhios (Doc.II), onde se preconizavam medidas mais drásticas, tendentes a dificultar a realização dos espectá­culos e limitar os seus protagonistas, indicando alguns nomes "a cujos programas não deve ser conce­dido o visto: Padre Francisco Fanhais, Zeca Afonso (Dr. José Afonso), Barata Moura, Manuel Freire, etc.". Meses mais tarde, em Março de 1971, outra missiva (Doc.III) acrescentava a esta lista outros nomes: Adriano Correia de Oliveira, Rui Mingas, (José) Jorge Letria, Tossan, Deniz Cintra e o Grupo Intróito, classificando como "os mais extremistas" Padre Francisco Fanhais, Zeca Afonso e Manuel Freire, e "mais moderados" os restantes... Em 73, ano de "eleições", o regime continuava a isolar-se, interna e externamente, e a afundar-se em fatais contradições. Ainda assim, continuava a procurar aperfeiçoar os métodos repressivos para impedir que as vozes dos cantores da Liberdade se fizessem ouvir, para o que contava com os seus Venerandos e Obrigados ser­vidores. E é neste quadro, onde, em clubes e colectividades recreativas e associações estudantis, os "convívios" eram cada vez mais usuais, que em 27 de Março o ministro Gonçalves Rapazote, transmite a todos os governadores civis e presidentes de câmara, a indicação para a adopção do conjunto de medidas suge­ridas pelo director geral da Cultura Popular e Espectáculos (Doc.IV), com o intuito de dificultar a sua con­cretização, tornando mais exigente a aquisição do visto e impondo a necessidade de exercer pressão 'Junto dos organizadores, dos exploradores dos recintos ou dos dirigentes das instituições onde se saiba que devem ser realizados..." Mais tarde, a 29 de Março de 1974, no Coliseu dos Recreios de Lisboa, sob a habitual vigilância polici­al, teve lugar o Encontro da Canção Portuguesa, com a participação, entre outros, de Zeca Afonso, a quem a Pide e a censura apenas deixou cantar "Milho Verde" e "Grândola, Vila Morena". Esta ultima, sugeriu a elementos do MFA que se encontravem presentes a senha do movimento libertador. Pouco tempo depois, como é sabido, a ditadura caíu dando lugar à Liberdade e Solidariedade, permitin­do ver mais de perto a UTOPIA: cidade sem muros nem ameias.

Doc.I

Doc.II


Doc.III

Doc.IV

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