Correm velozes vários animais na erva molhada. É ele que os vê espreitar e logo de seguida desaparecer, enquanto vai conduzindo o camião cheio de homens que vestem ganga velha, a cara da cor do carvão. Gritam e agitam os braços para as mulheres à beira da estrada, as crianças em busca de mais amoras.
Ao longe tocam guizos. E sinos. Depois de algum silêncio, recomeçam todos os sons. Da mais antiga cidade alemã trouxe um rádio chamado ELEKTRA, que pôs sobre o chão de ardósia do moinho de azenha transformado em casa para viver. Avança para ele e espera um bocadinho (antes da música, já se acende dentro uma luz constante). E agora ouve-se de novo a mesma canção.
Fragância morena/ Portal de marfim/ Ondina açucena/ Chamando por mim
Às vezes também canta. Com o casaco pelos ombros, caminha entre os pinheiros, esta mania dos pés quase descalços, pisar flores que ninguém viu nascer. Segura um pau e com ele recusa os picos, afasta fetos. Pingas grossas caem-lhe na testa e desata a correr, lembrando-se da voz desconhecida. Inventa novas palavras para a música da canção; escreveu uma vez um poeta que tudo canta e cantar é enorme. Tudo canta e cantar é enorme.
Procura a bicicleta debaixo da caruma e monta-a. Pára para colher frutos, enche com castanhas ainda verdes os bolsos. Retira-as dos ouriços e fica feliz por não se magoar. Ali em baixo, inventou há muitos anos uma história. Eram duas miúdas em que uma tinha olhos de quem está sempre a subir uma escada de caracol. Essa dizia à outra que via na rua jarras cheias de prata e saturava-a, propondo-lhe planos de roubos e fugas. A outra respondia-lhe que isso tudo era uma alucinação com tanta luz, o que na verdade tinha diante dos olhos eram vasos do longo corredor segurando abundantes ramos de camélia branca, com um brilho não muito longe do da suave prata. Ele contorna as árvores em sitios cada vez mais perigosos, levanta-se do selim. Fixa-se o riso; como sempre quer agarrar tudo à volta.
Na flor da montanha/ Na espuma a cair/ Nos frutos de Agosto/ Na boca a sorrir
À noite, a euforia das festas. As luzes, o fogo. Jogos de moedas. Tremem os palcos improvisados à frente de cafés e tabernas com rendas de videira sobre as portas. Bebidas, conversas, mais canções que se ouvem. Muitos rapazes e raparigas com fitas apertando os pulsos, é ai que acreditam estar a sua sorte. Atravessa as aldeias, nos caminhos às curvas inclina-se, solta do guiador as mãos, procurando equilíbrio. Fogo de artifício começou há pouco a cair, sem sequer chegar a deitar lágrimas.
Ai húmida prata/ Meu sonho sem ver/ Ai noite de lua/ Meu lume de arder
Ele está de pé, frente à última janela na sua casa da cidade. Uma boca que pousa na orelha. Quem é? Vira-se e diz-lhe nos cabelos: pensa na tua cabeça, já viste como a tens? Ela leva logo as mãos à nuca. (Com o avanço dos dias, ELEKTRA repete maior número de canções. Algumas pessoas já foram à rádio falar da vida do autor, mas eles preferem a voz de quem canta). Regressa trazendo uma tijela de água, sai-lhe um fino pente do bolso. Ele ajoelha defronte dela e molha devagar o pente. Em que pensas? Em nada. Faz-me um risco ao lado que é o risco mais bonito que há. Depois levanta-se e vai até ao primeiro degrau da escada, apoia-se e começa a escorregar no corrimão lustroso, reflectindo a humidade dos cabelos. Nunca mais a há-de ver.
Tinha uma oficina junto ao porto. Ao acabar de limpar vasos e pintar azulejos, imaginava futuras combinações, então beijava as suas próprias mãos. Nos instantes em que sinos tocavam, acreditava poder encontrá-la ao pé da água, mirando luzes frouxas. Acertara um encontro, mas tomava-se cada vez mais tarde. Passeava à beira das docas e nas praças pareceu-lhe uma noite reconhecer o homem que cantava aquela canção. Chamava-o pelo próprio nome mas ele não respondia, acabando por se sumir, como se a Terra fosse demasiado redonda. Queria dizer-lhe uma coisa, desejava dar-lhe o braço e repetir-lhe ao ouvido um elogio. Se não nascesse, tinha que ser inventado.
Da morte zombando/ Na aurora lunar/ Num jardim suspenso/ Do seu fulgor.
Ao longe tocam guizos. E sinos. Depois de algum silêncio, recomeçam todos os sons. Da mais antiga cidade alemã trouxe um rádio chamado ELEKTRA, que pôs sobre o chão de ardósia do moinho de azenha transformado em casa para viver. Avança para ele e espera um bocadinho (antes da música, já se acende dentro uma luz constante). E agora ouve-se de novo a mesma canção.
Fragância morena/ Portal de marfim/ Ondina açucena/ Chamando por mim
Às vezes também canta. Com o casaco pelos ombros, caminha entre os pinheiros, esta mania dos pés quase descalços, pisar flores que ninguém viu nascer. Segura um pau e com ele recusa os picos, afasta fetos. Pingas grossas caem-lhe na testa e desata a correr, lembrando-se da voz desconhecida. Inventa novas palavras para a música da canção; escreveu uma vez um poeta que tudo canta e cantar é enorme. Tudo canta e cantar é enorme.
Procura a bicicleta debaixo da caruma e monta-a. Pára para colher frutos, enche com castanhas ainda verdes os bolsos. Retira-as dos ouriços e fica feliz por não se magoar. Ali em baixo, inventou há muitos anos uma história. Eram duas miúdas em que uma tinha olhos de quem está sempre a subir uma escada de caracol. Essa dizia à outra que via na rua jarras cheias de prata e saturava-a, propondo-lhe planos de roubos e fugas. A outra respondia-lhe que isso tudo era uma alucinação com tanta luz, o que na verdade tinha diante dos olhos eram vasos do longo corredor segurando abundantes ramos de camélia branca, com um brilho não muito longe do da suave prata. Ele contorna as árvores em sitios cada vez mais perigosos, levanta-se do selim. Fixa-se o riso; como sempre quer agarrar tudo à volta.
Na flor da montanha/ Na espuma a cair/ Nos frutos de Agosto/ Na boca a sorrir
À noite, a euforia das festas. As luzes, o fogo. Jogos de moedas. Tremem os palcos improvisados à frente de cafés e tabernas com rendas de videira sobre as portas. Bebidas, conversas, mais canções que se ouvem. Muitos rapazes e raparigas com fitas apertando os pulsos, é ai que acreditam estar a sua sorte. Atravessa as aldeias, nos caminhos às curvas inclina-se, solta do guiador as mãos, procurando equilíbrio. Fogo de artifício começou há pouco a cair, sem sequer chegar a deitar lágrimas.
Ai húmida prata/ Meu sonho sem ver/ Ai noite de lua/ Meu lume de arder
Ele está de pé, frente à última janela na sua casa da cidade. Uma boca que pousa na orelha. Quem é? Vira-se e diz-lhe nos cabelos: pensa na tua cabeça, já viste como a tens? Ela leva logo as mãos à nuca. (Com o avanço dos dias, ELEKTRA repete maior número de canções. Algumas pessoas já foram à rádio falar da vida do autor, mas eles preferem a voz de quem canta). Regressa trazendo uma tijela de água, sai-lhe um fino pente do bolso. Ele ajoelha defronte dela e molha devagar o pente. Em que pensas? Em nada. Faz-me um risco ao lado que é o risco mais bonito que há. Depois levanta-se e vai até ao primeiro degrau da escada, apoia-se e começa a escorregar no corrimão lustroso, reflectindo a humidade dos cabelos. Nunca mais a há-de ver.
Tinha uma oficina junto ao porto. Ao acabar de limpar vasos e pintar azulejos, imaginava futuras combinações, então beijava as suas próprias mãos. Nos instantes em que sinos tocavam, acreditava poder encontrá-la ao pé da água, mirando luzes frouxas. Acertara um encontro, mas tomava-se cada vez mais tarde. Passeava à beira das docas e nas praças pareceu-lhe uma noite reconhecer o homem que cantava aquela canção. Chamava-o pelo próprio nome mas ele não respondia, acabando por se sumir, como se a Terra fosse demasiado redonda. Queria dizer-lhe uma coisa, desejava dar-lhe o braço e repetir-lhe ao ouvido um elogio. Se não nascesse, tinha que ser inventado.
Da morte zombando/ Na aurora lunar/ Num jardim suspenso/ Do seu fulgor.
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