16 de outubro de 2007

CARTA A UM “FILHO DE UM DEUS MAIOR ”

Já o tempo se ia habituando a navegar por mares adversos e a buscar na inquietação da noite a saída para o quotidiano das ruas da amargura.

Já o tempo se ia habituando a lamber as esquinas ao sabor das fugas que atormentavam o espírito e o corpo.

Já o tempo se ia habituando a avisar em surdina que se erguiam muros em volta dos subterrâneos da liberdade.

Já o tempo se ia habituando a entoar canções com lágrimas como se o choro acalmasse o ódio a uma vida feia, ameaçante sempre a rondar os confins do desespero.

Já o tempo se ia habituando!

Com outros vieste do fundo do tempo a bordo das barcas novas.

Chegaste de mansinho erguendo a voz com pressa de viver naquela terra assombrada.

Sentiste ao que vinhas e cantaste o mês onde começava a mágoa dizendo que nunca poderiam ser os rostos a bater á porta do poema.

Ao vento que passava perguntavas o que já sabias; que o vento calava a desgraça e por isso nada dizia.

Pediste uma capa negra, uma rosa negra que virasse as costas à saudade.

Fizeste-nos namorar com a menina de olhos tristes à espera do soldadinho que nunca mais havia de chegar.

Ensinaste-nos a falar com a lua viajante que nos trazia as más notícias: o soldadinho, afinal, voltava numa caixa de pinho do outro lado do mar.

Disseste-nos que eras livre como as aves, que os corações que nascem livres não se podem acorrentar, que não há ventos que não prestem nem marés que não convenham.

Pediste ao Tejo que lavasse bancos e empresas de comedores de dinheiro, palácios e vivendas, casebres e bairros de lata porque a uns fartam e a outros matam.

Foste dizendo, cantando, avisando até que saíste aparelhando um barco abandonado na praia num Outubro em ressaca das marés vivas, vividas.

Desses tempos tão perto continuam a caminhar – exactamente aqui ao lado – os amigos que já partiram, os amores e os desamores, as vitórias e as derrotas, todas as causas, passadas, presentes e futuras, o mundo que quiseste mudar.

Desses tempos tão perto continuam a caminhar – exactamente aqui ao lado – todos os sonhos, mesmo aqueles que já foram esquecidos, as utopias que parecem loucas, as alegrias e as tristezas que têm assolado este palmilhar de estrada.

Porque nos ensinaste a haver sempre alguém que resiste, sempre alguém que diz não, por teres ajudado a descobrir a saída do vale escuro passaste a caminhar, desta vez não ao lado, mas para sempre dentro da vida de um povo.

Fazendo-nos ao mar para que não fiquemos cercados continuaremos por isso a acender no teu, o nosso cigarro.

Outubro,16,2007

Paulo Esperança

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