Publicado em 1990 na revista nº6 da AJA, este artigo de Rui Eduardo Paes, reveste-se de uma enorme importância por duas razões. Primeira: desde então quase nada foi feito em termos de resposta a este texto/apelo, exceptuando a obra de Elfriede Engelmeyer "José Afonso, poeta". Segunda: vai ao encontro da frase proferida por Alípio de Freitas "José Afonso é o nosso Bach", na homenagem de Guimarães do mês passado, a qual, descontextualizada, suscitou algumas reacções precipitadas, já que no contexto do seu discurso, Alípio de Freitas, simplesmente quis dizer o mesmo que Rui Paes disse há mais de 15 anos atrás, ou seja, que chegou a hora da obra de José Afonso ser estudada. Como diz Rui Mota: "Não sei se é o "nosso" Bach, mas deve ser estudado como tal. Porque não promover um colóquio sério sobre a obra poético-musical do Zeca, convidando especialistas da matéria. Há-os em Portugal e no estrangeiro e uma simples pesquisa permitirá descobrir onde eles/elas se encontram...
Esta é uma boa altura para fazê-lo: 20 anos passados sobre a morte do Zeca e a criação da AJA."
Aqui fica o texto, aqui fica o apelo.
Se o leitor destas breves linhas se der ao trabalho de averiguar o que já foi escrito a propósito da música de José Afonso, e falo especificamente da música, não dos poemas ou da sua militância, verificará que muito pouco ou mesmo nada ficou registado em letra de imprensa. É um trabalho, pois, que está por fazer.
E no entanto parecia óbvio a aliciante da tarefa para os musicólogos ou jornalistas especializados que poderiam, juntamente com os cantautores que privaram com o criador de Grândola Vila Morena, ir ao fundo das suas motivacões músicais. Não pretende ainda esta prosa colmatar tal ausência de reflexões retrospectivas, coma adiante se verá, mas tão só Iançar o repto necessário a quem esteja mais preparado.
Tenha-se em consideração, antes do mais, que a música popular portuguesa não é área em que eu habitualmente me movo, mas sem dúvida nenhuma que a música de José Afonso entronca com os valores e os procedimentos que me cativam e vem sendo objecto de uma intervencão jornalística e crítica minha já de anos. 0 que dele sei permite-me considerar que não the tem sido feita uma justiça proporcional ao seu exemplo – é demasiado habitual vermos quem use a figura do Zeca Afonso para defender estranhos conceitos de nacionalismo e isolacionismo músical, ao encontro de uma portugalidade que é na verdade muito menos pura do que se pretende fazer crer. Bastaria ter um mínimo de conhecimentos históricos para percebê-lo, se a ideologia não fosse mais poderosa do que a simples factologia.
Passemos ao !ado de maiores considerações a propósito desta esquerda com contornos ideológicos nacionalistas e contra-natura, para argumentar que José Afonso é o primeiro e o maior dos compositores e intérpretes da MPP a configurar uma música que é o produto de confluências de género, geografia e história, ou seja, algo de fabricado e conceptualizado. Pode-se admitir que a introdução de ritmos africanos é complementar, nalgumas das suas cancões, ao projecto de uma música de cariz português que não aliene nenhum dos seus ângulos e nenhuma das consequências presenciais do português no mundo, partindo do razoável princípio de que toda a cultura, incluindo a músical, se alimenta das suas exterioridades, das suas margens. Quando José Afonso tocava e cantava segundo uma tipologia africana era ainda de música portuguesa que se tratava, portanto.
Mas é precisamente neste ponto que reside o cerce da questão. Toda a música que dispõe de uma identidade, distinguindo-se por ela e a partir dela, é também uma música que se dâ ao mundo. Ou para ir ainda urn pouco mais longe: a música portuguesa do Zeca vale enquanto música do mundo, e se é portuguesa porque é uma música do mundo, porque resultou de um determinado percurso histórico e humano, porque transformou as geografias (Europa, Península Ibérica, África, no caso) mediante a sua transversalidade cultural e física, porque interiorizou as expressões musicais que a rodeavam, lhe deram enquadramento e razão de ser.
José Afonso talvez tenha sido o mais feliz cantor do chamado fado de Coimbra, e se esta é uma opinião pessoal, não fica difícil confirmá-la. O fado de Coimbra, como se sabe, é uma música de raiz, tem uma autenticidade própria, mas convém lembrar de que se trata, igualmente, de uma construção, não de uma forma «natural» de música. Em cultura nada há que seja natural, tenha-se coma assente. Vamos pois ao resto. 0 Zeca fez um excelente trabalho de recolha da tradição musical portuguesa, uma tradicão que apresenta, diga-se para mais, uma boa diversificação de modelos a origens e já por si comprova os cruzamentos que constituem isso que é «ser português». Esses temas vestiu-os numa fórmula da canção que, obviamente, não surgiu do nada. De onde vem ela, então?
De tantas e tantas práticas que conheceu de outros músicos a cantores de similar empenhamento, entra catalães a italianos, franceses e bascos, irlandeses e alemães, entra cantores de intervencão de nacionalidades várias, entra escolas muito bem caracterizadas (a «chanson française», por exemplo), entra autores de música popular. Compositor original, sem dúvida, José Afonso pertence de qualquer modo a uma família de características claramente definidas, com pares à altura na cena internacional. E porque nunca o Zeca pretendeu traduzir na sua música aquilo que Portugal era antes da Revolucão, isto é, um país fechado sobre si mesmo, ante a lonjura de um mar metafísico e os montes junto da fronteira espanhola que serviam para esconder a emigragão, ele fez questão em «produzir» os seus discos com a distanciação imprescindível para o reconhecimento. Lembro-me do seu convite a um brasileiro para certo trabalho de produção, um jovem chamado Phototi. Nessa altura não clamaram as salazaristas de esquerda.
José Afonso gostava dos blues, do jazz, e até alguma coisa do rock – menos, todavia – podemos encontrar nos seus álbuns. Nos arranjos, mas mais estruturalmente na composição, isso é evidente, e não oferece matéria para imprecisões conjecturais. Ou julgariamos que não, mas afinal houve quem não escutasse o Zeca com atencão. É pena, mas no meio de outros desmandos que sobre ele já se fizeram não é para admirar. Corrija-se a tempo este legado: a música de José Afonso está por estudar.
Rui Eduardo Paes
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