Estas notas, incluídas nas diversas edições do livro "Cantares", forma há pouco introduzidas na discografia no site da AJA. Aqui ficam mais uma vez.
BALADA DO OUTONO - Mais propriamente Balada do rio. Dominada ainda pelo velho espírito coimbrão, é o produto de um estado perpétuo de enamoramento ou como tal vivido, uma espécie de revivescência tardia da juventude. O trovador julga-se imprescindível, como um protagonista que a si próprio se interpela para convocar a presença das águas dos ribeiros e dos rios, testemunhas vivas do seu solitário cantar. A imagem do "Basófias" (Nome por que é conhecido o Mondego na gíria coimbrã), que incha e desincha quando lhe apetece, deve ter influído na gestação da "partitura". Uma certa disposição fisiológica propensa à melancolia explica o começo das dores sem falar na albumina anunciadora de futuras e promissoras "partenogéneses".
PASTOR DE BENSAFRIM - Letra e música de José Afonso, sendo a letra vagamente inspirada nas éclogas de Bernardim - desde crianças que mostramos uma propensão natural para as rimas em imo Num desses retornos à fase pré-Iógica das origens, o autor destas linhas travou conhecimento com um pastor que lhe narrou as suas mágoas. Um pouco a martelo, o assundo da conhecida écloga de Bemardim apareceu metamorfoseado num drama pastoril cujo nome "Bensafrim" os montes e as ervinhas repetem até aos mais humildes recantos da serra algarvia.
MENINO DO BAIRRO NEGRO - Estilização decente de um refrão indecente recolhido numa parede cheia de sinais cabalísticos, desses que conservam para a posteridade as mais expressivas jóias dos géneros líricos nacionais. A negritude de que fala o poema existe nos estômagos diagnosticados por Josué de Castro no seu livro "Geopolítica da Fome". Os meninos de ouro que habitavam os céus antes do Dilúvio descem à Terra e são condenados pelo tribunal de menores a viverem em habitações palafitas até ao dia do Juízo Final representado por uma bola de cartão que desce, desce até tocar nas montanhas.
MINHA MÃE - Letra e música de José Afonso. A uma mãe não canonizada por nenhuma data oficial nem institucionalizada por nenhuma nota oficiosa.
TRAZ OUTRO AMIGO TAMBÉM - Qualquer semelhança entre a epígrafe sintetisadora da Amizade e "Uma Casa Portuguesa Com Certeza" é com certeza pura coincidência. O autor nunca se colocou, por falta de méritos próprios, no plano polemístico da hospitalidade lusitana, o que não o impede de abrir a porta a quem quer que venha por bem, excluídos, até prova em contrário, os amigos das bibliotecas alheias.
LES BALADINS - O período lourenço-marquino, canto do cisne de uma série iniciada na "Companhia Nacional de Navegação" conheceu o aparecimento de "Les Baladins", eventualmente roubado ao título de um poema de Appolinaire para figurar no que foi depois um arremedo de "valsa musette" repenicada e saltitante.
CORO DA PRIMAVERA - Consultem-se os comentários ao "Canto Jovem" do qual o "Coro da Primavera" é a introdução coral e orquestral. A composição da letra resistiu a todas as tentativas de lubrificação. O rufar dos tímbales e dos tambores intervém gradualmente como simples apoio no início, contagiante e poderoso no final.
PERSPECTIVE - Melodia interrompida em Pombal pela chegada de um DKW descapotável à estação de serviço da "Shell". O resto dos preparos e dos alinhavos continuou a viagem até Lisboa em dois carros pesados do mesmo modelo.
CANÇÃO DO MAR - O tema evocado no cenário um tanto simplista do casinodaFigueiradaFoz vive de uma valorização puramente sonora que lhe é dada pelo acompanhamento e pela repetição cadenciada da palavra mar. A dificuldade consistiu em fazêla passar ao plano abstracto como elemento omnipresente no espírito do cantor fora do ambiente convencional para que foi criada.
CANÇÃO - Letra de Luís de Camões (modificada). Música de José Afonso. A leitura cadenciada do início da "Canção IV" susicitou a presumível adaptação musical requerida pela primeira estrofe, mas de impossível aplicação que garantissem um mínimo de unidade e sequência.
BALADA ALEIXO - Homenagem a António Aleixo, poeta cauteleiro, natural de Loulé.
LAGO DO BREU - Balada de inspiração Brassens, define simultâneamente um estado de espírito e uma autobiografia, uma crise de consciência (destruição do sentimento de remorso) e um meio social (os prostíbulos do "Terreiro da Erva" ou os seus sucedâneos mais ou menos bem iluminados).
TENHO BARCOS, TENHO REMOS - O barco aludido pertencia a uma pequena sociedade constituída por Manuel Pité, António Barahona, António Bronze & José Afonso. Situações vividas pelos quatro, em comunidade perfeita com o mar algarvio, agruparam-se numa espécie de ciclo fraterno representativo de uma das fases mais felizes da vida do autor.
SENHOR POETA - Complemento noctívago de "Tenho barcos..." Os dois versos Soltam-se as velas / Vamos largar foram intercalados na estrofe com o consentimento de Barahona a fim de ajustarem o conjunto às necessidades da composição musical.
ALTOS CASTELOS - Para ser executada à viola por Rui Pato, obedecia mais às exigências duma instrumentação de tipo clássico ao gosto dos tocadores de alaúde do século XVI. Limitei-me depois a reajustar uma letra, ou melhor, um conjunto de sons que não ultrapassasse na divisão silábica a divisão musical. A ingenuidade de certas canções de roda e a gratuidade de alguns poemas surrealistas (lembrei-me duma canção de António Barahona) indicaram-me o sentido do conjunto apropriado ao canto.
POMBAS - Pretendia-se que a melopeia, feita de reiterações e alongamentos em que a voz mantém as sílabas finais até se extinguir lentamente, correspondesse a um fundo independente do contexto literário e vice-versa. O poema, a melodia e o acompanhamento separam-se e reúnem-se de novo, repelidos por uma espécie de movimento ascencional sem princípio nem fim. A voz eleva-se e tenta fixar por meio de modulações adequadas o voo dos pássaros que se perde na distância.
CANÇÃO VAI-E-VEM -O belo poema de Paulo Armando pareceume, como na realidade foi, inutilmente sacrificado aos compassos de uma valsa monótona e fria. Para finalizar exigia-se uma conclusão airosa; o estribilho, meio anedótico, foi colhido num livro de cancioneiro algarvio pertencente à biblioteca da Capitania de faro. O verso Bonecas, primores, da minha lavra, substituiu o original Bonecos de palha. O resultado, um pouco cabotino, impôs-se pela necessidade de sujeitar a letra ao primado da música.
TECTO DO MENDIGO - Letra concebida em estado de penúria física e mental. O franciscanismo aparece no texto musicado como uma doutrina de compensação sem qualquer relação directa com a camisa lavada do autor.
BALADA DO SINO - Resultou duma acompanhamento à viola para outra canção inacabada. A letra e a melodia retomam o gosto antigo ainda não de todo extinto das barcarolas infantis que falavam de barcos e barqueiros. Numa praceta do Alto Maé, à hora da sesta, as crianças brincavam: Que linda barquinha / Que lá vem, lá vem...
CANTAR ALENTEJANO - A mulher a quem é dedicada esta tentativa de A B C é uma heroína popular bem conhecida no Alentejo onde há anos se deu o facto a que o autor faz discreta mas comovida referência. Numa versão primitiva o tenente dirigese à ceifeira e diz-lhe: Quando eu te furar a pança / Muda a dança / P'ra vocês. Para além do episódio, Catarina vive na memória dos homens e da própria terra que a viu nascer e morrer. Os versos foram modificados por carência de elementos biográficos mas as ceifeiras continuam a pôr flores na campa de Catarina.
SANTA MARIA A SEM-PAR - Este nome um tanto anacrónico é o título de uma pequena toada dedicada a Zélia e depois adaptada a um texto comercializado para ser proposto a um concurso. Os elementos figurativos, excluindo o conhecido símbolo da chaminé algarvia, foram introduzidos na canção a título coercitivo, de acordo com as normas determinadas pelo júri, que a eliminou na primeira volta.
MARIA - O conhecimento da Zélia, num lugar do Algarve, reconciliou-me com a água fresca e com os tons maiores. Passei a fazer canções maiores.
CAVALEIRO E O ANJO - Nasceu a bordo do "Angola", num estado de espírito que excluía qualquer veleidade criadora. O personagem aparece de relance, indeciso entre ficar na hospedaria e partir a coberto da noite mas em segurança. O mais difícil é ficar. É no interior da hospedaria, guardada à vista pelos "Botas Cardadas", que o espectro decide permanecer e readquirir as suas humanas e verdadeiras dimensões.
CANÇÃO DO DESTERRO (EMIGRANTES) - Sugerida em Lourenço Marques, pela leitura dum artigo da Seara Nova sobre as causas da emigração portuguesa. Tenta-se evocar a odisseia dos forçados actuais, partindo em modernas naus catrinetas, como os Mendes Pintos de outras épocas, a caminho dum destino que na História se repete como um dobre de finados.
CANÇÃO DE EMBALAR - Lourenço Marques 1965. Toada medievalesca em tom menor. Letra e música ocorreram quase simultâneamente. A estrela d'alva surge acima do horizonte para os lados de Xiparnanime com a cumplicidade das restantes. Quando os adultos dormem e as luzes se apagam nas janelas os meninos levantam-se e vão cumprimentar as estrelas.
CANTO JOVEM - Para ser cantado pelos estudantes universitários que o autor conheceu numa digressão para que foi convidado. Destina-se a ser interpretado como música coral por duzentos figurantes de ambos os sexos e de todas as proveniências e condições.
POR AQUELE CAMINHO - Lourenço Marques 1965. Versos destinados à página literária de "Voz de Moçambique". A música peca por manifesta ausência de identificação com o espírito dos ritmos e dos temas africanos.
ELEGIA - O Luís de Andrade toca todas as teclas. A música e a letra afiguram-se-me excepcionalmente consorciadas. Pertencem a um tipo de reportório que inclui também as "Pombas". A interpretação procurou seguir à risca a orientação desejada pelo autor.
NATAL DOS MENDIGOS - Inspirada em parte em "Los Quatro Generales" e outras canções populares espanholas. Os acompanhamentos apropriados deveriam incluir ruídos produzidos por guisos, pedras e matracas. Na região de Alpedrinha e nos ambientes da Beira-Serra, lá para os lados de Folgosinho, os mendigos acercam-se dos portais dos grandes senhores para cantar as janeiras e encher os alforges de pão e castanhas.
RONDA DOS PAISANOS - A música ocorreu-me no WC do rápido Faro-Lisboa, depois da estação da Funcheira. Lembrei-me de algumas, semelhantes na forma e diferentes no seu conteúdo picaresco: D. Miquelina tinha uma sobrinha, Conheci uma francesa, Ó moleiro guarda a filha (esta última, minhota), cantadas em coro nos grandes festins coimbrões. Em Lisboa inteirei-me dos postos do exército, que são muitos e soantes. Rimados às parelhas dariam uma canção popular, capaz de ser entendida por soldados e generais.
CORO DOS CAíDOS - Um antigo poema incompleto serviu de base à música. O conjunto constituiria como que um complemento dos vampiros entretidos, após a batalha, na recolha dos mais valiosos despojos.
CANÇÃO LONGE - Foi a primeira balada a ser composta no edifício dos "Incas", em Coimbra. Estavam presentes, entre outros, o Vítor Lobão, o Tomé e o Cassiano. O Tomé disse que era semelhante à música de fundo do filme "Sansão e Dalila". Por isso, nunca a levei muito a sério, embora me tivesse agradado.
NA FONTE ESTÁ LIANOR - O arcaismo repetitivo da melodia coadunava-se, a meu ver, com o espírito de uma redondilha do cancioneiro de Garcia de Resende, mas a métrica depurada da "medida nova" raramente se adaptava à chateza vagamente afadistada da composição. "Cantiga partindo-se" e a redondilha dentro da música não seriam uma ofensa à lírica camoniana mas uma pequena e despretensiosa homenagem prestada, a séculos de distância, ao génio do seu autor.
VAMPIROS - Numa viagem que fiz a Coimbra apercebi-me da inutilidade de se cantar o cor-de-rosa e o bonitinho, muito em voga nas nossas composições radiofónicas e no nosso musichaIl de exportação. Se lhe déssemos uma certa dignidade e lhe atribuíssemos, pela urgência dos temas tratados, um mínimo de valor educativo, conseguiríamos talvez fabricar um novo tipo de canção cuja actualidade poderia repercutir-se no espírito narcotizado do público, molestando-lhe a consciência adormecida em vez de o distrair. Foi essa a intenção que orientou a génese de "Vampiros", entidades destinadas ao desempenho duma função essencialmente laxante ao contrário do que poderá supor o ouvinte menos atento. A fauna hipernutrida de alguns parasitas do sangue alheio serviu de bode espiatório. Descarreguei a bilis e fiz uma canção para servir de pasto às aranhas e às moscas. Casualmente acabou-se-me o dinheiro e fiquei em Pombal com um amigo chamado Pité. A noite apanhou-nos desprevenidos e enregelados num pinhal que me lembrou o do rei e outros ambientes brr herdados do Velho Testamento.
TROVAS ANTIGAS - Dedicadas ao doutor Vítor Pereira. Correspondem à mesma época em que surgem "Ronda dos Paisanos" e "Altos Castelos". Do contacto superficial com o folclore romeno, muito semelhante na forma a certas canções raianas, provêm as origens subconscientes destas trovas. A escolha um pouco arbitrária das quadras e os solos introduzidos antes de cada quadra pela viola de Rui Pato deram ao conjunto uma feição mais ligeira, mas talvez mais genuína.
Ó CAVADOR DO ALENTEJO - Feita no Algarve a pensar no Alentejo. A letra foi modificada em África, depois de um efémero mas profundo contacto com uns amigos da "Sociedade Musical Fratemidade Operária Grandolense", aos quais muito deve o autor.
Ó VILA DE OLHÃO - Fiz muitas viagens a Olhão, minha terra adoptiva. A meio do caminho da Fuzeta, entre Olhão e Marim, a vila vai-se adelgaçando, a viagem toma-se mais rápida e ruidosa, devido ao vento que entra pelas janelas. Pode-se berrar sem que ninguém nos ouça. Foi assim que nasceu esta crónica rimada. Servida pela cadência mecânica do "pouca terra", versa um tema alusivo às vicissitudes por que passa o mexilhão quando o mar bate na rocha. A culpa não é do mar.
Ó ALTAS FRAGAS DA SERRA - Letra e música de José Afonso, glosando a primeira quadra de origem popular.
MENINO D'OIRO - Letra e música de José Afonso. O tema parece filiar-se em longínquas raízes peninsulares. Tratado pelas mais diversas formas mas conservando a sua origem popular, surge como motivo inspirador dum conhecido fado de Coimbra.
GRÂNDOLA, VILA MORENA - Pequena homenagem à "Sociedade Musical Fratemidade Operária Grandolense", onde actuei juntamente com Carlos Paredes.
AVENIDA DE ANGOLA - Adaptação dum antigo poema.
VEJAM BEM - Música do filme "O Anúncio", a apresentar no Festival de Cinema Amador pelo Cineclube da Beira. O filme foi projectado em sessão privada, ainda incompleto e sem diálogos. Um homem procura emprego num escritório, dirigese ao gerente de uma firma conceituada, a capatazes e mestresde-obra. Em vão! Privado de fundos, vê-se obrigado a dormir ao relento e a roubar para comer. Na retrete de um restaurante, único lugar onde não é visto, devora apressadamente dois ovos que metera ao bolso, aproveitando-se da algazarra geral. É à luz deste contexto dramático que poderão entender-se a linha melódica e o texto rimado apensos às sequências julgadas mais expressivas.
1 Comment:
Boas! Esta letra é das coisas mais bonitas que conheço. Eu, trabalho como voluntário em Instituições de Acolhimento de Jovens e esta música é dos primeiros ensinamentos que lhes proporciono. No entanto, gostava de lhes tocar, viola, esta canção. Peço que me enviem os acordes para ruimfraguito@aeiou.pt! Haja o que houver...
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